O que assistimos hoje é uma via de duas mãos a nocautear o liberalismo político e econômico. E, quem diria, é o seu maior afiançador desde 1945, os Estados Unidos, que desfere o golpe. Quem diria, né? Hoje, no dia em que o tarifaço dos EUA sobre o Brasil completa nove dias, escreverei sobre a conjuntura mundial em que ele ocorre.
Qual é a via de duas mãos? O multirateralismo, novo paradigma em ascensão, e a queda da hegemonia estadunidense, o velho. Esse choque de placas tectônicas, como é de praxe, causa um gigantesco terremoto. Mas isso é metáfora. O que ocorre na letra fria (que ferve) é que, quando um paradigma geopolítico entra em decadência, isso se dá num contexto de violenta disputa de poder, de força, que é o que estamos assistindo. Ocorre tanto pela via das armas, como vemos na Ucrânia, quanto pela da economia, como no caso das tarifas do governo estadunidense contra o mundo. Os EUA querem se manter hegemônicos e salvar e fortalecer sua economia, às custas de transferências fiscais obtidas de outros países. Não escapa absolutamente ninguém, aliados ou adversários, embora variem os percentuais cobrados. E tudo, basicamente, é regido por essa lógica, por mais que se falseie ou mascare intenções. Simplificando, essa é a conjuntura política e econômica sob a qual vivemos.
De China a União Europeia, de Rússia ao Canadá, todos foram pra vala comum do tarifaço dos EUA. Um caso absolutamente didático é o da Suíça. Esse país foi tarifado em mais de 30%, devido ao superávit que mantém com os EUA em sua balança comercial. Sua primeira-ministra foi para os Estados Unidos negociar. Perdeu a viagem, não foi recebida por ninguém, solenemente ignorada. O governo de lá não quer negociar, quer que as empresas suíças vão produzir na Terra do Tio Sam e gerem emprego e renda por lá, escapando das tarifas. É isso e ponto. Como quem pode mais chora menos, China e Rússia, o primeiro com sua economia e o segundo com seu arsenal nuclear, conseguem peitar os estadunidenses, enquanto os outros se viram como podem. União Europeia e Japão "negociaram" uma tarifa de 15%, além de se comprometerem em realizar investimentos bilionários dentro dos Estados Unidos. Capitularam, claro, pois dependem muito do mercado "americano" e estão bastante atrelados a liderança do dólar e a influência dos EUA sobre as regras do mercado financeiro.
No Brasil, o componente político se insere, não como determinante, eis que vimos acima que a motivação principal é econômica, mas como acessória na estratégia de dominação e demarcação de sua zona de influência geopolítica, especificamente da extrema-direita dos EUA que ataca tanto internamente os Democratas quanto externamente países com governos de esquerda na América Latina. O objetivo? Colocar governos ideologicamente afinados com o fim de facilitar a dominação econômica. Por isso a tentativa de solapar a soberania brasileira, atacando sua Justiça em favor de aliados internos sob julgamento por crimes cometidos contra o Estado Democrático de Direito. De certa forma, isso reproduz exatamente o que ocorreu nos EUA: ao assumir, o presidente perdoou todos os golpistas de lá e, agora, pressiona pelos golpistas daqui, seus aliados. Eis o uso da força, o exercício do poder econômico, politico e militar visando a capitulação do Brasil, com apoio da quinta coluna nacional, que trai o Brasil visando alcançar seus interesses internos.
Logo, como no caso da Suíça, não há interesse de negociar, mas sim de subjugar e humilhar diplomaticamente, como a Embaixada dos EUA no Brasil vem fazendo ao emitir notas públicas atacando nossa soberania e ameaçando autoridades do Executivo, Legislativo e Judiciário. Acintoso. Desrespeitoso. Inaceitável. E é neste contexto conjuntural que vemos a debacle do liberalismo econômico e político, agredido pela ação Republicana estadunidense internamente e para com o mundo.
Todas as regras do livre comércio advindas ao final da Segunda Guerra Mundial foram para o espaço, o lance agora é o mais bárbaro protecionismo econômico, intervenção regulatória brutal do estado na economia - até empresas estadunidenses operando em outros países são coagidas. Essa conversa de "mão invisível do mercado regulando a economia" sempre me pareceu boba e ideológica, uma teoria que se choca com a ação humana concreta em busca de seus interesses econômicos - Marx sempre esteve e continua estando certo: é o material (econômico) que rege a vida. Os EUA usaram o regramento liberal quando lhes favorecia, até surgir o multirateralismo e colocar em cheque a hegemonia estadunidense. Agora, deram um cavalo de pau de 180 graus e atacam até a democracia liberal. O atual presidente tentou um golpe no caso Capitólio e fracassou e, reeleito, ataca instituições universitárias, deporta imigrantes, intervém em administrações Democratas e tenta alterar os distritos eleitorais a fim de garantir maioria Republicana no congresso ano que vem. Um projeto de poder autoritário não consegue conviver com a democracia liberal, eis que ela lhe é entrave, limita-lhe. Por isso vemos o que acontece hoje nos Estados Unidos: sem solapar sua democracia interna, não conseguirá se estabelecer. O caso estadunidense é grave, mais até do que ocorre pelo mundo, eis que estamos falando da maior e mais sólida democracia liberal do planeta e, se ela ruir, o próprio modelo liberal ruirá no mundo. Não é por nada que o governo Republicano ataca a ONU e suas agências, inclusive esvaziando a OMC, que regulava o mercado liberal no mundo. Se atacas as regras do mercado liberal, a OMC se torna empecilho, entrave, barreira: um espaço de lei não serve pra uma terra sem lei. Sem regras, só força!
Para brigar economicamente com a China e impedir a ascensão do multilaterismo, tudo vale. O jogo se torna sem regras, só interessam os objetivos serem alcançados pela força em suas diversas faces concretas: econômica, militar, diplomática e política. Uma troca de paradigma, uma perda de hegemonia nunca aconteceu neste mundo sem conflito, sem guerra. É o que estamos assistindo. Um neocolonialismo descarado, sem disfarces ou pudores. Cada um por si primeiro e depois, se der, por seus aliados - para quem os tiver. Ai de nós.
Que o Brasil consiga passar por esta tempestade, soberano e economicamente saudável, apesar dos que desejam nos submeter política e economicamente, auxiliados pelos traidores da pátria - falsos cristãos com fé no dinheiro e pseudo patriotas que trabalham pelo MAGA.
Um bom final de semana para todos. Cuidem-se, vacinem-se, vivam e fiquem com Deus.