PRIMEIRA PARTE
1 - GRITO NA NOITE
I
Na madrugada fria de uma quarta-feira de junho, inverno gaúcho, um grito grave retumbou pelo Parcão de Charqueadas, interrompendo a transa de um casal de maconheiros sobre o Memorial ao Mineiro.
- Tu ouviu? O que foi isso?
- Sei lá, mas não para, não para, amor...
Muito doidos, voltaram a se concentrar no sexo. E ficou por isso, visto que o orgasmo urgiiiaaa...
II
Às nove horas, a bibliotecária abriu a porta da Biblioteca Pública Municipal Professora Vera Maria Gauss e entrou. Aparentemente, tudo normal, tudo calmo. A outra funcionária ainda não chegara. Deu uma olhada superficial e constatou que tudo estava no lugar, os ladrões de livros e os drogados não haviam dado as caras na noite passada, apesar das garrafas vazias de bebidas alcoólicas ao redor do prédio.
Colocou pó na cafeteira e a ligou, como de costume. Foi então ao WC da direita, o único que funcionava, lavar as mãos.
III
Um grito de mulher, apavorado e estridente, alertou as poucas pessoas que se aventuravam pelo Parcão naquela manhã fria.
- O que que foi esse grito?
- Não sei, mas veio lá da Vera Gauss.
- Vai lá ver o que foi.
- Eu? Por que eu?
- Porque tu é homem e funcionário, né!
Lá se foi o servidor da Cultura, saindo cauteloso do Prédio das Bandeiras, e ao avistar a biblioteca poucos metros mais abaixo na descida leve do terreno, viu a bibliotecária na frente, atônita. Apressou o passo até ela.
- O que aconteceu? Fui tu que deu esse grito?
- Foi. Tem um homem morto dentro da biblioteca - falou rápido, arregalando os olhos e apontando para o interior do prédio.
O receio cedeu espaço à curiosidade. Entrou, foi até o WC, olhou e enxergou o corpo caído de bruços, a cabeça arrebentada, miolos espalhados pelo chão e uma sangueira danada. Sentiu nojo. Parecia ser um homem de uns trinta anos, mas não conseguiu ver o rosto. Não tocou no corpo e e nem chegou perto, preferiu deixar a honra para a Brigada e pra Civil.
Voltou para a rua. A bibliotecária chorava contidamente, amparada pela auxiliar recém chegada.
- Tu sabe quem é ele?
- Não, não. Não sei - respondeu a bibliotecária.
- Não pergunta, ela tá muito nervosa. Não tá vendo? - atalhou rispidamente a auxiliar. Tu já chamou a Brigada?
- Vou ali na secretaria fazer isso agora. E vou avisar o secretário, ligar pro celular dele.
Um pequeno grupo de curiosos começou a se aglomerar no local.
- Que foi que houve?
- Tem um homem morto dentro da biblioteca.
- Quem é?
- Quem matou ele?
- Não sei, vão chamar a Brigada pra ver.
- Ei, não é pra entrar aí.
- Só tava espiando...
IV
Uns minutos e uma viatura da Brigada Militar chegou, veloz e com o giroflex gritando. Com pistolas empunhadas, os três policiais entraram na biblioteca.
Nesse espaço de tempo, a notícia já bombava pelas redes sociais na cidade e, como não havia de ser diferente, transformara-se no comentário do dia. Uma multidão de curiosos se deslocava para o Parcão.
O morto calçava com um coturno preto, vestia calça tática Invictus cor areia e uma jaqueta militar de brim velha, verde-oliva, do exército.
- Puta que pariu, sargento! Arrebentaram a cabeça do cara!
- É. Que porrada!
- Mas não tem nada por aqui.
- Vai lá e ajuda o colega a dar uma girica no local pra ver se acham algo. Vê por onde ele e o outro entraram. E falem com as funcionárias, depois.
O soldado saiu. O sargento se agachou bem perto da cabeça, a fim de ver o rosto. Estava com os olhos esbugalhados. Ou foi por causa da porrada ou foi pavor por algo que viu antes de morrer. De início, não deu ricunha no morto.
No meio de todo aquele sangue, viu um livro. Sem tocar, pra não adulterar a cena do crime e corromper o trabalho da Perícia, procurou ler, na capa preta com detalhes em verde, o título.
"A BIBLIOTECA DA MEIA NOITE".
"Cacete" - pensou. "O cara tava lendo isso quando mataram ele".
2 - CLUBE DO LIVRO
I
Delegacia de Polícia de Charqueadas.
- Que horas a senhora saiu ontem da biblioteca? - inquiriu o policial.
- Após às 21 horas, assim que terminou a reunião do Clube do Livro - respondeu a bibliotecária.
- O Clube do Livro. O que ele é, exatamente?
- Um grupo que se reúne toda a terceira quarta-feira do mês para debater um livro previamente escolhido.
- Ok. A senhora foi a última a sair do prédio?
- Sim. Eu é que carrego as chaves.
- Tem certeza de que não ficou ninguém lá dentro?
- Tenho, claro. Absoluta.
- Reparou algo diferente ou anormal ao sair?
- Não, não. Nada.
- Quantas pessoas estavam na reunião do clube?
- Quinze.
- Poderia me enviar uma lista com o nome delas, depois?
- Sim, claro. O pessoal assina o livro de presenças.
- Já tinha visto o morto pela biblioteca alguma vez?
- Não, não. Acho que não vi.
- Não tem certeza disso?
- Não, não. Fiquei muito nervosa na hora, nem reparei no rosto dele.
- É este. Olha bem a foto. Reconhece?
- Não, não. Nunca vi antes.
- E o nome dele?
- Não, não. Também não. Posso ir embora? Tô nervosa e cansada, tá sendo um dia muito longo e pesado.
- Ok. Por favor, só mais uma pergunta: reparou se havia alguma janela aberta ou quebrada?
- Logo que cheguei pra trabalhar não reparei em nada diferente, dentro ou fora do prédio.
II
Entretanto, havia: a basculante lateral do banheiro desativado, utilizado como depósito de livros descartados e repetidos. Foi por ali que a vítima e, talvez, o assassino, entraram, embora não houvesse digital alguma no local. A vítima usava luvas de tecido e, por certo, seu executor também. Sem pegadas e sem arma do crime no interior do prédio, apenas as do coturno do morto no lado de fora. A perícia não encontrou nada, apenas identificou a vítima, que portava documentos. Sua carteira, com cartão de débito do Banrisul e 157 reais em cédulas e moedas, não fora mexida pelo criminoso. Nem o celular foi levado. Aparentemente, foi apenas um assassinato.
A vítima segurava o livro na mão direita, caiu agarrando-o, com o dedão por dentro, na página 15, onde o título "Um homem à porta" encimava o segundo capítulo. Mórbida curiosidade.
III
Um homem morto é um homem morto, tão somente, duro e frio. Contudo, se assassinado bárbara e misteriosamente, torna-se uma personagem popular, sobretudo numa cidade de 35 mil habitantes como Charqueadas.
- Quem diria? Um cara morreu de madrugada na Biblioteca do Parcão, sem ninguém ver quem foi.
- Foram esses drogados que vivem por lá.
- Foram os traficantes da facção.
- Foram os brigadianos da PM.
IV
Realmente, ninguém viu. O casal de maconheiros ouviu, mas estavam muito tesudos e muito chapados para repararem em algo mais. De qualquer forma, não seriam eles a ir na delegacia dar informações.
V
O pessoal do Clube do Livro de Charqueadas foi chamado na Polícia Civil para prestar esclarecimentos.
- Lembra qual livro debateram naquela noite?
- Sim. A Biblioteca da Meia Noite, de Matt Haig.
- Interessante, é justamente o livro que a vítima segurava ao morrer...
- É mesmo?! Puxa!
- Que tipo de literatura vocês leem no Clube?
- Ah, de vários tipos.
- Recorda alguns?
- Sim, todos. Drácula, Frankenstein, O médico e o monstro... O colecionador... Sobre os ossos dos mortos, Tudo é rio, Com sangue pelas canelas... Antiquário... Inesquecível, A terra das coroas, O Grande Gatsby, O morro dos ventos uivantes, A cachorra, A metamorfose, O triste fim de Policarpo Quaresma, O centauro no jardim, Veronika decide morrer, O retrato de Dorian Gray... Noite na taver...
- Esse livro, Com sangue pelas canelas, é de um autor local, não é mesmo? - interrompeu o policial.
- Sim, do Henrique Severo. Se passa na Revolução Federalista.
- Interessante esse título. Vocês leem uns livros pesados, não é mesmo? Mortes, assassinatos, sangue, gente estranha e esquisita...
- Opa, já vi que o senhor conhece literatura.
VI
Sim, conhecia. Muitíssimo bem, aliás. Era licenciado em Língua Portuguesa e possuía mestrado em Literatura pela UFRGS. Fizera concurso para a PC pelo salário, folga, estabilidade e aposentadoria especial com integralidade e paridade.
Conhecia esse título, A biblioteca da meia noite, mas não se interessara em comprar e ler. Talvez fosse o caso, agora. Passaria na Mix, mais tarde, pra ver se eles o tinham.
3 - MÁS IDEIAS E PESADELOS
I
Quando Zé foi naquela noite arrombar a janela do banheiro da biblioteca pública, não poderia imaginar que a ideia lhe custaria a vida. Só desejava sair do frio , deitar no sofá velho e curtir o barato legal que as Heineken lhe proporcionaram.
Entrar foi fácil, como sempre, o ruim era suportar o fedor daquela daquela peça, misto de mijo, merda, mofo e rato morto, tudo junto e misturado. Entrou e, já lá dentro, com a lanterna do celular, chamou sua atenção o livro de capa verde e letras metálicas prateadas, em caixa-alta, que refletiam A BIBLIOTECA DA MEIA NOITE. Estava sobre a mesa da bibliotecária. Ele sabia, pois cuidava o movimento interno da Vera Gauss quando passava caminhando pela rua de saibro em frente sem dar bandeira.
Curioso com o nome do livro, ainda mais aquela hora, pegou-o. Abriu aleatoriamente, forçou a vista e leu um título: "O homem à porta". Decidiu que daria uma lida no sofá e foi para o banheiro mijar, com o exemplar na mão direita. Ao entrar no WC, sentiu um arrepio gelado percorrer a espinha, virou-se e iluminou o interior da biblioteca. Nada. "Que merda mesmo, vou cagar e ler um pouco no vaso" - pensou, sem supor que tal pensamento ocasionaria a coda de sua vida.
Virou-se novamente, nem bem deu mais um passo e sentiu o forte deslocamento do ar atrás de si. Só teve tempo de virar o rosto e ver a coisa lá, fitando-o com olhos enormes e bestiais. Apenas sentiu o horror chegar e gritou, antes da escuridão absoluta.
Não soube o que o matou, nem como. Não teve oportunidade de ler o livro, jamais soube o rumo que sua vida teria tomado caso tivesse feito escolhas diferentes.
II
A bibliotecária teve pesadelos a noite toda e, por isso, acordou sonolenta na manhã de quarta-feira. "Esses livros estranhos, cheios de gente esquisita, me deixam mais estressada, sonho com eles e durmo mal". Olhou para o filho e o marido ainda adormecidos na cama do casal, sentindo dó por ter de deixar o pequeno. Era a vida. Melhor pegar algo para ir comendo no deslocamento para o trabalho, pois a colega já avisara no dia anterior que chegaria atrasada, o que a obrigava a chegar às nove em ponto para abrir a biblioteca.
Pelo caminho, já no busão circular, pensava no pesadelo com gente morta, com crimes. Afastou tais pensamentos. Lembrou do mofo no teto e na parede da biblioteca, tomando-o como se fosse doença ou maldição. Iria mais uma vez enviar um email para o secretário da Cultura, pois a coisa estava ficando insuportável. Vai ver até nem eram as leituras do Clube do Livro, mas sim o cheiro do mofo que lhe causava os pesadelos. "Vá saber, né?" De vez em quando sentia até umas energias por lá, umas presenças, um frio repentino, o que pode ser o efeito de uma reação química em seu cérebro, provocada pelo mofo.
Abriu a porta pensando no café que passaria, para que o pastel de carne descesse bem pela garganta. Olhou em volta rapidamente, para ver se haviam novamente arrombado alguma janela. Nada, a princípio. Pegou o café no armário , colocou um filtro de papel na cafeteira elétrica, despejou o pó dentro, colocou água e ligou. Lembrou dos camundongos que percebera estarem por ali há alguns dias e foi lavar a s mãos.
Não esperava, jamais, que a realidade corporificasse seus pesadelos. Travou, estática, estupefata e assustada ante a cena horrenda. Não ouviu o próprio grito, embora este tenha lhe tirado do topor inicial e feito correr pra fora.
III
O funcionário da Cultura estava há dias de olho na colega novata na secretaria. Bisoiava de soslaio sua bunda no momento em que o grito lhe tirou o fugaz prazer da vida. Lembrou que tivera um pesadelo na noite passada, com gente morta. Ficou parado. A bunduda o intimou, mandando-o ir lá na Vera Gauss ver o que estava acontecendo. Não era o diálogo que desejava, mas foi.
IV
A CC já reparara nos furtivos e cobiçosos olhares do colega, mas sem chance, se fazia de sonsa por não estar a fim de rolo com ele. "Cruzincredo!" Ainda mais naquela manhã, após uma noite de sonhos ruins, com gente morta. Ouviu o grito e assustou-se. E o molenga ali, parado, em vez de ir acudir. Tem homens que são lerdos mesmo, se a gente não mandar fazer as coisas, não atinam. Depois ainda quer me comer. Bem capaz que eu vou dar pra esse daí.
V
Quando o sargento ouviu a chamada para a ocorrência pelo rádio da VTR, lembrou que justo naquela noite sonhara com gente morta.
VI
O policial plantonista esperava não ter muita papelada para fazer naquele dia. Que não desse ocorrência pesada. Ainda mais que tivera pesadelo com gente morta.
VII
A auxiliar da biblioteca retornava do exame de saúde para o serviço. Reparou no furdunço na frente da biblioteca. Lembrou do pesadelo da noite passada.
4 - A MORTE ENXERGA A TODOS
I
A morte do Zé Xergão na Biblioteca Vera Gauss era o assunto na cidade. Saiu matéria no Portal de Notícias, postagem no Aconteceu Charqueadas, debate na Carbo News FM e capa na Gazeta Mineira. Até nos noticiosos da RBS TV, Zero Hora, Diário Gaúcho e Correio do Povo foi manchete.
II
Os vereadores comentaram o assunto na Câmara: os de oposição, criticando o prefeito pelo abandono do Parcão e da biblioteca municipal; os de situação, afirmando que não tinha nada a ver uma coisa com a outra, pois crime é com a Brigada Militar e a Polícia Civil, que investigam.
III
O movimento na biblioteca cresceu dez vezes, sendo oito dessas vezes apenas de curiosos, desejosos de ver o local do crime, o "banheiro da morte". A bibliotecária, em choque devido ao ocorrido, entrou em biometria. Determinaram para substituí-la a CC novata, para tristeza do concursado, que não compareceria à biblioteca devido a auxiliar não ir com a sua cara e não esconder isso de ninguém, principalmente dele.
IV
Os integrantes do Clube do Livro ficaram contrariados com o secretário da Cultura, que achou por bem suspender por enquanto as reuniões mensais na Vera Gauss, devido a comoção gerada pelo assassinato. O livro de julho seria, vejam só o que é a ironia deste zombeteiro chamado destino, Um corpo na biblioteca, de Agatha Christie. Obviamente, o membro que indicara sua leitura foi novamente chamado na DP.
V
- Porque a senhora indicou esse livro?
- Bem, eu gosto muito dos livros da Agatha Christie e, como nenhum havia ainda sido lido no Clube, resolvi indicar um dela, esse.
- E porque justamente esse?
- Pelo título. Usamos a biblioteca para nossos encontros, então pensei nesse para criar um clima. Um clima literário, entende?
- Não entendi. Explique, por favor.
- Ora, como explicarei? O título... me parece óbvio, né?
- Não é. Para mim, não é. E parece, sim, muita coincidência...
- É, isso foi, mesmo. Mas foi um homem que assassinaram na Vera Gauss, enquanto no livro foi uma mulher. Além disso, a biblioteca do livro era particular, não pública.
- Sim, conheço a história, já li esse livro.
- É mesmo? O senhor também aprecia Agatha Christie?
- Sim, mas isso não vem ao caso, agora. A senhora reside em Charqueadas?
- Sim. Na Cohab.
- Bairro Sul América?
- Sim, esse.
- Frequenta há quanto tempo o Clube do Livro?
- Desde o final de 2023. Pra ser mais exata, desde o segundo semestre daquele ano.
- A senhora trabalha onde?
- Em Porto Alegre, numa empresa de advocacia. E estudo na UFRGS, faço uma pós lá.
- Interessante. Em quê?
- Teoria Literária.
- É mesmo?
- Sim, estudo com o professor Fischer. Conhece?
Claro que conhecia. Quem não conhece o professor Luis Augusto Fischer, que escreve pra ZH e é o autor do famoso Dicionário de Portoalegrês? Ainda mais sendo mestre em Literatura pela mesma UFRGS. Aliás, não poderia esquecer de comprar o box com seis livros sobre a História da Literatura no Rio Grande do Sul, que ele lançou pela editora Coragem.
VI
Quase todos os membros do Clube do Livro afirmaram não conhecer o Zé Xergão, exceto um: um policial penal aposentado, que relatou o ver eventualmente circulando pelo Parcão, passando em frente a biblioteca e olhando discretamente para dentro. Achou que poderia ser alguém cuidando para roubar livros ou o computador durante a noite, o que ocorria com certa frequência na Vera Gauss, quase como o gotejar, quando chove forte, dentro do prédio.
- Mas era só isso. O que mais eu poderia fazer, né? Abordar o cara? Não.
VII
Entretanto, a morte enxerga a todos, sem distinção, por mais "invisíveis" socialmente que sejam. E a morte enxergou Zé Xergão de modo horripilante, violento e misterioso. Só ele viu, rapidamente, a "coisa". Foi assim que pensou nela em seu derradeiro momento. Agora, Zé é escuridão e silêncio neste mundo.
5 - CAFÉ FRIO
I
Detalhes, detalhes e mais detalhes que não levam a lugar nenhum. Um emaranhado de detalhes desconexos, alguns até conflitantes: como um homem como Zé Xergão possuía conta no Banrisul, com cartão e 157 reais na carteira? Não seria como eu ter uma Ferrari, por exemplo, mas é estranho, pelo menos um pouco, isso. Devo ir no banco falar com o gerente a respeito.
Imerso nessas reflexões sobre o caso, o café esfriou sem que o policial sequer o tocasse. Precisava comprar um copo térmico.
II
"A CC novata foi ao banheiro. Como pode? Ainda na semana passada tinha um cara morto lá dentro, com os miolos pra fora". A auxiliar da biblioteca sentia falta da bibliotecária. "Será que ela vai ficar mais de um mês de biometria?" Criaram uma boa relação naqueles anos de labuta comum, uma parceria. Não queria que terminasse assim, dessa jeito.
- Acho que teu café tá frio.
- O quê? - perguntou pra CC, que voltara do banheiro, trazendo-a de volta ao presente.
- Teu café. Tu serviu, mas não tomou.
III
O funcionário da Cultura pensava nas nádegas protuberantes da CC e na morte do Xergão: o primeiro, amuava-o; o segundo, enraivecia. "Porra mesmo, esse cara não tinha outra hora e outro lugar pra morrer?" Não se atrevia a ir na Vera Gauss, por qualquer motivo que fosse. A auxiliar era uma veterana esperta, sacaria fácil o seu lance e o humilharia na frente da CC. Não, não era possível.
- Tá, e aí? Vai ficar aí sentado o dia inteiro, só no cafezinho?
- Oi, bom dia, secretário.
- Ah, me viu agora? Já faz mais de meia hora que cheguei.
- Ah, desculpe... foi o crime, me abalou...
- Eu sei o que te abalou... - comentou o secretário, irônico.
O funcionário só olhou, surpreso, sem dizer nada. Não, não era possível que ele soubesse. "Será que eu tô dando tanta bandeira assim?" Estava, mas claro que estava. Era paixão demais envolvida, atordoando seus sentidos e atenção. Tanto que o café esfriara dentro da xícara sem que ele tivesse bebido um gole sequer.
IV
O sargento, sentado na poltrona da sala de sua casa, matutava acerca da ocorrência da biblioteca, em tudo o que presenciara. Em 23 anos de Brigada foi a coisa mais esquisita com a qual se envolvera. Nem o corpo do preso velho enterrado na Colônia Penal Agrícola, descoberto uma semana depois do seu sumiço, mexeu tanto com a sua curiosidade. Nenhuma abordagem, tiroteio ou prisão rivalizava com aquele assassinato na Biblioteca Vera Gauss. "Quem raios matou o cara? E o livro na mão dele, que doido isso." Nem notou que o café trazido pela esposa esfriara na mesa de centro.
V
A CC fuçava no celular, verificando seu Tinder. Será que arrumaria uma transa legal pro findi? Achou que o da semana passada fosse um cocão de dois litros cheio, mas era apenas uma mini Coca Zero e, ainda por cima, sem gás. Tinha de escolher melhor, desta vez. Mas como saber essas coisas? Perguntar pras amigas e obter referências era dar muita bandeira, não fazia seu estilo. Lembrou do Rodrigo. Ah, aquele sim, um baita macho, mas bah. Parou de fuçar no celular e pegou a xícara de café para tomar um gole antes de voltar a carimbar livros. "Argh, esfriou".
VI
"Merda, só faltava essa morte na biblioteca agora pra me fuder de vez" - pensava o jovem secretário, ávido por se eleger vereador na próxima eleição. "A pasta da Cultura já é de alta rotatividade em Charqueadas e uma porra dessas ainda acontece! É o prefeito peidar torto em seu gabinete e eu caio".
O rodeio da cidade não havia sido lá grande coisa em março, mas não era culpa sua, era o primeiro ano da nova administração e seus primeiros meses como secretário da Cultura. "Querem me derrubar..."
- Com licença, secretário, o prefeito ligou. Pediu pro senhor ir lá na prefeitura para conversar com ele.
- Puta merda, me fudi, que bosta.
- Secretário!?
- Ah, desculpa, to nervoso com esse assassinato. Me desculpa, por favor.
Saiu o secretário, apressado, em direção ao prédio da prefeitura, na avenida José Athanásio. "Eu sei o que te deixou nervoso: o medo de cair da cadeira e dar com a bunda no chão" - pensou a chefe de gabinete da Cultura que, no íntimo, ambicionava ocupar a mesma cadeira com a sua bunda. Sabia que o prefeito usar a rede fixa interna e não o celular para falar com o secretário era sinal de bunda chutada. O café do secretário gelara sobre a mesa, intocado. "Outro mal sinal... pra ele". Sorriu.
6 - COUSA
I
O vento frio do final de junho mais uma vez soprava forte por entre as árvores do Parcão ao fim do dia. A biblioteca fechara há quase três horas, pois funcionava das nove às quinze, direto. A escuridão tomava conta do lugar, um amplo salão em formato circular repleto de estantes, devido a iluminação precária da parte externa, o que servia de convite à incursões como a que Zé Xergão fizera. Contudo, dado o acontecido, ninguém mais tomara iniciativa semelhante, mesmo que oportuna.
Para além do que estivesse dentro do prédio, a luz da lua cheia a entrar pelas janelas laterais e a claraboia central tornava perfeitamente perceptíveis móveis, utensílios e livros. Para quem passasse pela rua de saibro batido, contrariamente, a Vera Gauss, vista de fora, estaria submersa na escuridão e no silêncio.
II
Cousa enxergava bem e escutava melhor ainda. Preferia "Cousa" a "coisa", como o rapaz pensara nela. Sim, lia perfeitamente pensamentos humanos, era um dom, uma faculdade. Cousa lhe soava melhor, mais arcaico, a seu gosto, além de a diferenciar do personagem do desenho animado.
Adora ter a biblioteca assim, silenciosa e escura, só pra si. Odiava os invasores! Filhos da puta! Cagavam e não puxavam a descarga. Teve um, até, que certa vez cagou no chão! Imundo! Roubavam o computador, livros e mexiam na comida das funcionárias. Transavam e deixavam as camisinhas usadas no chão. Uns batiam punheta de pé, olhando putaria nos celulares e sujavam tudo com seus fluídos corporais sexuais masculinos. Alguns vomitavam. Que nojo, criaturinhas insignificantes e repugnantes.
Agora estava bom. Que paz. Foi um santo remédio.
III
Foi até a mesa da bibliotecária. O livro estava lá, quando Zé entrou e o pegou. Criaturinha asquerosa. Logo o livro da bibliotecária, que eu estava lendo. Merda, não consegui terminar de ler. Bati muito forte, a praga caiu com o livro agarrado na mão, melecando todo ele. Estragou o livro, o miserável. Fiquei ali, olhando-o no chão, manchando o livro com miolos e fluído vermelho. Esses humanos são cheios de fluídos nojentos. O fluído vermelho, quente. Humanos são quentes, odeio isso, repulsa-me. Esperei a temperatura corporal dele cair, o que é mais rápido no inverno.
Ninguém veio, ninguém acudiu seu grito de pavor. Humanos são egoístas, querem calor. Que nem o casal sobre o Memorial ao Mineiro, trocando fluídos sexuais em busca do calor. Que nojo. Sei que ouviram o grito, mas o egoísmo na busca do calor falou mais convincente a seus espíritos mesquinhos, lascivos e mundanos. E eu é que sou a "coisa".
Odeio humanos e seu calor, enjoam minha frieza natural. E ainda tomam aquela repugnante bebida preta, quente e horrorosa a fim de ficarem ainda mais quentes. Que nojo, que ódio. Sou movido a nojo, repulsa e ódio. Essas criaturinhas conseguem despertar o que há de pior em mim. Ou de melhor, que seja. Maldito seja o maldito café, o tal de café. Que esfrie em todas as xícaras!
IV
Pobrezinha da bibliotecária. Tão fofa, tão querida. Não merecia o susto que levou. Mas onde eu colocaria aquele estrume? Acho até que não deveria ter matado, mas tive certeza de que o verme usaria as páginas do livro verde para limpar a bunda após defecar, assim que percebesse que não havia papel higiênico no banheiro. Monstro! Desgraçado! Coisa, verdadeira coisa. Desgraçados todos eles! Só os dongos são criaturas aceitáveis, tão pequenas, tão inofensivas, tão fofinhas. Bom as ver circulando pelo prédio enquanto leio sentado no sofá velho, até que o sol se insinue. Odeio o sol, seu calor e sua luz ofuscante. Gosto da lua e das estrelas, de sua luz fria e bela. Na maior parte do tempo, por isso, escondo-me ao raiar do dia, atravessando o portal. Ah, o portal, o refúgio do refúgio. Sempre que o cruzo na sala verde, sinto-me um daqueles personagens enigmáticos de A livraria perdida, de Evie Woods. Afinal, eis o que sou, não é mesmo? Vou. Entro e sigo. Para evitar o insuportável calor humano.
V
A Vera Gauss está descuidada. O acervo está defasado e desatualizado. Não que eu ligue para isso, é-me indiferente, assim como o mofo e as goteiras, sempre que chove forte. Ah, os dias de chuva, queridos dias de chuva. Neles, somente neles, com o sol bloqueado pelas nuvens chumbo, ando um pouco, pela biblioteca. Vejo aqueles que os humanos não veem, mas sentem e supõe. Estes, vagam indiferentes e ansiosos por aqui, prisioneiros de si mesmos, de uma vaidade incomensurável que os consumiu em vida corpórea e, agora, os cega, embotando o discernimento. Coitados. Penitentes. Para eles, a biblioteca é uma penitenciária, a não ser que uma viva alma venha e retire por empréstimo aquele livro há muito esquecido na estante, que com tanta dedicação e expectativa escreveram quando em vida. Os livros esquecidos, como na biblioteca de A sombra do vento, de Zafón. Não recordo de ter visto esse escritor por aqui, mas sei que já não existe mais fisicamente.
VI
Na hora do almoço, quando a auxiliar sai e a bibliotecária fica sozinha, sentada ante sua mesa de trabalho, passo por trás dela, que sente o meu frio natural. Não é todo mundo que o sente, mas ela é das que percebe. Incomoda-se, olha pra trás e pensa ter visto algo. E viu: eu, a Cousa. Vê, mas não enxerga. Sente, de fato. Quase vê, é um brevíssimo relance. Daí vou embora e torno a me esconder.
7 - A VIDA NAS SOMBRAS
I
O canto mais escuro da Vera Gauss, à noite, quando as luzes artificiais estão ligadas, é a estante ao fundo, à esquerda de quem entra, junto às janelas, que acomoda os livros em braile. Não tem lâmpada ali. Não precisa. E, ademais, quem lê livros em braile em Charqueadas? Praticamente ninguém, posso dizer, com a honrosa exceção de uma moça.
De lá, toda a terceira quarta-feira de cada mês, observo as reuniões do tal Clube do Livro. Já sabia dele desde 2020, iam iniciá-lo em abril, mas daí veio a abençoada pandemia, graças a Deus. Sim, Deus, devo ser uma criatura sua como todos, não é mesmo? Tragédia para os humanos, prazer para mim: paz, tranquilidade e silêncio. Mas, como tudo o que é bom termina, a pandemia passou e, no mesmo mês de abril, em 2023, enfim, conseguiram realizar a primeira reunião. Foi numa terça -feira, recordo bem, dia 18. Observo-os e os escuto, ali do meu canto, invisível. É o mais seguro. Não posso me aproximar muito, geralmente são em torno de uma dezena de pessoas, é muito calor humano reunido, pode me afetar em demasia, levando-me a corporificar. Imagina? Isso, nunca! A não ser em casos especiais, como na noite em que matei o cara.
II
Já vi escritores famosos nessas reuniões: Bram Stocker, Emily Brönte, Mary Shelley, Kafka, Fitzgerald, dentre outros. Esses, mais famosos, só aparecem por aqui se um livro de sua autoria está sendo discutido. Riem, fazem caretas, concentram-se, balançam afirmativa ou negativamente a cabeça e, assim que a reunião termina, partem. Destes, o mundo deve ser a prisão, acho. Não existem mais neste plano material, já deveriam ter ido embora, mas, como já disse, a vaidade é persistente e recalcitrante.
Já os menos cotados estão sempre por aqui, todos os dias e todas as noites. Quando alguém retira um livro seu por empréstimo, vão junto com a pessoa, visivelmente faceiros e radiantes, pois é o modo de saírem daqui pra verem o mundo. Na volta, sempre tristes, retomam o cumprimento de suas penas. Pobres coitados, infelizes.
Intriga-me a presença de uma mulher branca de cabelos claros. Todos aqui a tratam com deferência, inclusive os que foram escritores famosos em vida física, que a cumprimentam na chegada e se despedem na saída. Assiste a todas as reuniões do Clube do Livro, quieta, observadora. Ninguém diz o seu nome, mas parece ser a líder da biblioteca, não um dos que escreveram em vida. Desconfio de quem seja, mas nunca vi uma foto pra poder comprovar.
III
O tal Zé que matei não aparece por aqui. Seus interesses, bem sei, são outros. Só vinha à biblioteca nas noites de inverno, depois de já bêbado ou chapado, pra fugir do frio, defecar, urinar e dormir, nessa ordem. Não era um merda a ponto de ser ladrão de livros, mas assaltava a geladeira das funcionárias. Deixava tudo arrumado, porém. Pensando bem, até que não era mau bicho, dos piores, mas foda-se, não me arrependo. No tal inferno? Não, aposto que está num boteco, sugando calor dos vivos corpóreos, se é que minha experiência com desencarnados humanos está correta. Se fazia de doido pra passar bem, recebia um benefício e possuía conta em banco, achava-se muito esperto. Tipo estranho e excêntrico, outro desses humanos infelizes.
IV
Confesso que estava curioso pra ver o debate que fariam sobre o livro de Agatha Christie, de vê-la por aqui. Contudo, eu mesmo melei a coisa, ah ah ah. Possuo senso de humor. O livro? Justamente Um corpo na biblioteca, que coisa. Antecipei o livro e o crime, ah ah ah. Só que este, ao contrário do livro da Agatha, foi real e jamais será elucidado. Não há como saberem que existo, quanto mais que sou o matador. É mais fácil contatarem um desses tais médiuns e falarem com esses espíritos penitentes que estão aqui, sempre ávidos e disponíveis para um contato, do que comigo. Esses, sedentos de calor humano que já não possuem por incorpóreos, grudam-se feito durex nos médiuns.
Eu não, sou uma coisa, Cousa, tanto existo quanto inexisto. Transito entre os mundos material e etéreo. Na verdade, eu mesmo sei pouco sobre mim, apenas possuo consciência que sou. Sei que existo, da forma que existo. Sou dois, tese e antítese, o real e sua versão, metáfora, e ambos gostamos de estar aqui, não é mesmo? Principalmente nas solitárias e silenciosas noites de inverno.
V
Sou um guardião dos livros? Não, estou aqui somente porque gosto e pronto. É o meu cafofo, meu pedaço de chão neste planeta de Deus. Olha Ele aí de novo. Deus? Sim, Deus, oras. Também acredito Nele, claro. Só que do meu jeito, não a xurumela bíblica. Já li, mas não é a minha estante. Não matarás? Amarás o próximo? Tudo papo de otário, como disse o tal Bezerra da Silva, li por aí. Papo de presa, de vítima.
Alimento-me da energia da noite, da luz fria das estrelas e da lua. Hidrato-me ao vento. Por isso corporifico só muito especialmente, como naquele dia. Raríssimo. Corporificar demanda muita energia, avilta minha natureza essencial, diáfana.
VI
Fora as reuniões do Clube do Livro ou outra qualquer, fico por aqui, observando a lua e as estrelas. Morrerei? Nem sei se nasci! Vejo os infelizes incorpóreos vagando penitentes por aqui e os infelizes corpóreos no Parcão, pelas janelas de vidro. Só saio para hidratação, vez ou outra. Dou uma olhada nos livros, ocasiões em que se faz necessário enxotar um desses chatos pegajosos que aqui penam. Pelo que me tomam, esses alienados?
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SEGUNDA PARTE
8 - CAFÉ QUENTE NA TORRE DO SABER
I
Enquanto Cousa curtia seu tempo na biblioteca, o policial resolveu ir ao Banrisul falar com o gerente. Por ele, soube que José Antônio Aguiar Paixão Xavier, vejam, recebia um benefício e dele sobrevivia. Possuía residência fixa no Parque Manoel João, num casebre de madeira onde morava sozinho, órfão e solteiro, na rua Uruguai. Era, definitivamente, um tipo excêntrico, ensimesmado, calado, inofensivo e discreto, sem passagem pela polícia.
E agora? Beco sem saída! As análises da perícia só concluíram que a morte fora ocasionada por um objeto contundente bojudo, que arrebentou seu crânio e causou morte instantânea. Nada mais. Pelo menos o café oferecido pelo simpático gerente estava quente e era gostoso, como o próprio.
II
Um mês se passou do assassinato. A bibliotecária voltou para o serviço.
- Não vou ficar aqui, pelo menos por enquanto.
- Ai, que pena, Pra onde tu vai?
- Vou pra bilblioteca do CEU Jorge Afre, a Romeu Lombardi, lá na Cohab.
- Ah, vou sentir a tua falta - lamentou a auxiliar.
- É que não consigo ficar muito tempo aqui depois do que aconteceu. Fiquei traumatizada, acho. Vou até procurar um psicólogo ou psiquiatra, sei lá.
- Já acertou tudo com a nova secretária, então?
- Sim, falei com ela ontem. Ela concordou, achou uma boa.
- Ah, vou sentir saudade - insistiu a auxiliar.
- Não fica assim, amiga. Eu volto, acho, vai ser só por um tempo. Pelo menos assim espero que seja.
Beberam o excelente café quente feito pela auxiliar.
III
A nova secretária, ainda interina, ajeitava prazerosamente sua bunda na cadeira, satisfeita.
Sensação boa essa, cadeira confortável. Enfim, no comando. Quase oficialmente secretária. Salário maior, diárias gordas, oportunidade de fazer as coisas acontecerem, decidir os rumos da Cultura. "Quem sabe um Taj Mahal na Ilha da Paciência" - brincou em silêncio consigo, sorrindo da própria piada.
- Com licença, secretária - entrou o funcionário, batendo levemente na porta aberta. O prefeito ligou, quer falar com a senhora no gabinete dele.
- Ah, ok, obrigado.
Saiu o funcionário. "Ué, já?! Morrerei na casca do ovo? Deixarei de ser sem ter sido? A volta dos que não foram? A saída de quem não entrou? Bem, vamos lá ver o que o hômi quer comigo". Tomou o restante do café, ainda quente na xícara. "Bom sinal". E se foi, esperançosa, pra José Athanásio.
IV
Em cima do muro da Penitenciária Modulada, o sargento apreciava o sol nascente. Bonita a vista dali, se via ao longe o sol surgindo para além do Arroio do Rato, até onde a vista alcançava para o mato. Um espetáculo ampliado pelo amarelo, azul e vermelho que se sucediam no céu a colorir as nuvens. Com certeza é uma das melhores vistas de Charqueadas, depois do Trapiche do Jacuí, observado do Cais da Gerdau no verão. Fora boa a ideia de pedir um tempo da rua e ir para a guarda externa da Modulada, como os colegas o aconselharam. A oportunidade surgiu com a vaga aberta pela aposentadoria de outro sargento.
Desenroscou a tampa da térmica e encheu o copo de café. Bom absorvê-lo assim, quente e saboroso, espantando o frio do inverno.
V
A CC colava fichários de controle de retiradas e devoluções na última página dos livros, bebericando o quente e gostoso café passado pela auxiliar. "Que mão tem essa mulher pra fazer café, mas bah". Era melhor trabalhar ali do que no Prédio das Bandeiras, pois havia mais liberdade, sem a pressão da chefia em volta e sem os olhares gulosos e nada furtivos de certo colega concursando sem chance alguma.
A auxiliar, assumindo o comando interinamente, até quando durasse a ausência da bibliotecária, era tri de boa e com uma vantagem: impossibilitava que o sem chance aparecesse por ali. O público, igualmente, era de boa: mães com filhos retirando livros infantis, gurizada atrás de gibis e mangás, homens e mulheres atrás de romances. Geralmente eram sempre as mesmas pessoas, havia pouca variação, sendo que alguns traziam mimos e as funcionárias recebiam, eventualmente, chocolates e outras guloseimas - chegara a receber uma sopinha, certa vez.
Ouviu um toque em seu celular. Era uma mensagem do Rodrigo via Whats App. Era sexta-feira, o findi estava ganho...
VI
Já fazia quase dois meses que o crime acontecera na Vera Gauss. A poeira já baixara, mas o impacto do fato permanecia na história local e, com certeza, poderá se tornar uma lenda urbana charqueadense, assim como a namorada local do Cauby Peixoto. A vinda para a Romeu Lombardi fora uma boa ideia, o CEU Jorge Afre era um lugar bonito, novo, movimentado, logo colocaria público naquela biblioteca, bastava trabalhar certo e bem. Estava satisfeita ali, trabalhava sozinha, o prédio era retangular, bem menor que o da Vera Gauss, porém mais conservado e arrumado, sem aquela montueira crônica de caixas de papelão pra todo o lado. Ah, e importante: não havia goteiras. Só os onipresentes dongos. Nada é perfeito. Em suma, a Romeu Lombardi era uma biblioteca menor, embora mais ajeitada, funcional e organizada.
O café estava quente. Não era aquele café maravilhoso feito pela auxiliar, que possuía uma mão única para passar café, abençoada. Sentia, claro, falta da parceria de anos, mas o momento era o de ficar de boa, de canto, na tranquilidade e paz da Romeu Lombardi. A propósito, não sentia mais aqueles frios repentinos e tampouco tinha a impressão de ter visto algo. Vai ver que era mesmo o mofo da Vera Gauss a afetar o cérebro. O fato é que tudo mudara.
Sentia pena é por aquele prédio tão bom estar há tantos anos praticamente abandonado pelas sucessivas administrações, com mofo, infiltrações, banheiros danificados e nauseabundos, um quadro degradante. A Torre do Saber... Era esse o nome do projeto original, que previa mais dois andares. Tá arquivado lá na prefeitura, no Planejamento, que ficaria de concluir o restante do projeto. Nunca mais. Somente o primeiro piso, entregue pela mineradora de carvão Copelmi em troca de dívidas com a prefeitura, sedia o ambiente da Vera Gauss. Imagina só um mirante no terceiro piso? Que vista! E uma cafeteria lá? Sonhos, quimeras de café quente na Torre do Saber...
9 - RETORNO
I
Noite da terceira quarta-feira de setembro, inverno quase findo e primavera chegando, três meses após o assassinato. O novo secretário da Cultura, recém empossado, autorizou o retorno das reuniões do Clube do livro na Biblioteca Pública Municipal Professora Vera Maria Gauss. Não seria mais debatido o livro Uma corpo na biblioteca, de Agatha Christie, por motivos óbvios. Em seu lugar, a fim de comemorar o retorno à "casa" do Clube, escolheram um título simbólico: A biblioteca invisível, de Genevieve Cogman, escritora inglesa. Sim, de fato, simbólico o livro escolhido, em qualquer sentido, seja ela sabido ou ignorado...
II
Treze pessoas compareceram à reunião de retorno, com sede de debater a obra lida. O passado ficara no passado, um novo normal iniciava. Uma ausência era sentida: a da bibliotecária, que ainda não se sentia confortável para participar do Clube na Vera.
- Tá gente - iniciou a criadora do Clube -, acho que não vem mais ninguém O teto é até às oito e meia. Vamos começar?
- Bom, como eu indiquei o livro, vou ser o primeiro a comentar, ok?
- Ok.
- Achei o livro interessante, mas não o havia lido até sua seleção para o Clube, pois, como vocês sabem, prefiro, assim como todos, ser surpreendido pela leitura do livro do mês. De uma forma assim mais geral, o que achei mais legal no livro foi a distorção das leis da natureza que ocorre na história, com essas criaturas sobrenaturais e mágicas, muito loucas, até imprevisíveis, achei. E gostei muito do protagonismo feminino na história representado pela personagem principal, a espiã Irene, que se envolve, na busca pelo tal livro, com ladrões, assassinos e sociedades secretas, assim como é a organização para a qual ela trabalha, a Biblioteca. Achei também bem legal que a Biblioteca exista fora do tempo e do espaço, a colecionar livros e manuscritos de diferentes realidades. Também pela história se passar numa Londres alternativa, na qual até a realidade corre perigo.
- Isso? terminou? Então tá. Quem quer a palavra agora?
III
Era quinze pras nove e a reunião de retorno chegara ao seu final. Talvez, estimulados pela volta dos encontros do Clube, as notas para A biblioteca invisível foram altas, quase superando a média de 9.68 que A terceira vida de Grange Copeland obtivera em dezembro de 2024. Sua média ficou em 9.63, o que superava o segundo melhor avaliado até então, A menina que roubava livros, com 9.57.
Como fora combinado previamente, ninguém teceu comentário sobre o crime naquela noite: o assunto fora, por hora, proibido nas reuniões.
Todos foram trocando amenidades de despedida e indo embora. A auxiliar, com as chaves de biblioteca, foi a última a sair. Olhou para dentro da Vera Gauss, silenciosa e escura, e pensou: "Nem acredito, achei que a biblioteca seria desativada, mas estamos aqui ainda, de volta, tudo normal, como era antes". Ao se virar, sentiu um frio nas costas. Pensou ter visto algo dentro do prédio, de relance. "Bobagem". Foi até o calçadão do Parcão, sentou num dos bancos em frente ao Point e ficou aguardando seu uber.
10 - VARIAÇÕES SOBRE UM MESMO TEMA
I
O casal de maconheiros teve a ideia de ir por volta da meia noite de novo transar em cima do Memorial ao Mineiro, a cada dia mais abandonado e depredado, quase uma ruína. A moça não estava muito a fim, teve de ser convencida.
- Não sei não, não tô muito a fim, tô achando que ficou perigoso lá.
- Perigoso nada! Vamos lá transar, sim. Se no dia não deu nada, como nunca deu nada antes, porque que ia dar hoje? Aliás, dar, só tu vai dar hoje, eh eh eh eh.
- Muito engraçado, seu idiota - desdenhou. Não sei não...
- Olha: comprei um Jack Honey, que tu gosta, pra gente...
- Hum - vacilou. Tá, vamos.
II
Anderson e Lucas resolveram que esta mesma noite seria o momento ideal para ir na biblioteca, arrombar a janela do banheiro dos fundos, beber lá dentro e, depois, roubar o computador.
- Foda-se, vai ser divertido e legal e a gente ainda vai arrumar uma grana vendendo o compu. A gente leva um facão, por via das dúvidas.
- Claro, vamos nessa.
O que a juventude e a falta de cabeça, quando juntas, não fazem! Era bem coisa de dois guris de merda, mesmo.
III
Durante a reunião do Clube do Livro, Cousa ficou no seu canto escuro, junto à estante dos livros em braile, observando e ouvindo.
Interessante esse livro, lerei depois. A realidade é muito mais do que nossos sentidos captam ou mesmo que a imaginação mais criativa conceba. os membros do Clube, obviamente, não tomaram como concreta a fantasia do texto. Se soubessem...
Permaneceu ali até a auxiliar virar a chave, trancando a porta, e se virar pra ir embora. Percebeu que ela notou sua presença, ou seja, ela também sentia. Boa descoberta, a usaria noutra ocasião. Fazia a temperatura perfeita e agradável de final de setembro, o que a Cousa não apreciava tanto assim. Caminhou até as mesas das funcionárias pra ver se algum exemplar de A biblioteca invisível ficara por ali. Sim, dois. Coincidentemente, a capa era verde, com letras metálicas em caixa alta. Só que, diferente de A biblioteca da meia noite, eram douradas e não prateadas. Pegou um dos livro e resolveu abrir direto na página 15, lembrando do assassinato. Leu:
"- Ladra, ladra.
Irene levantou a saia e saiu correndo. O cascalho rangia sob seus pés e as primeiras gotas de chuva começaram a bater em seu rosto. Ela estava na frente do alojamento vizinho a Casa Bruce, e por um momento considerou abandonar o plano de fuga original e simplesmente entrar lá para despistar o seu rastro e reduzir a velocidade da perseguição. Mas o bom senso lhe dizia que isso não funcionaria por mais de alguns minutos...
O chiado sibilante vindo de algum lugar atrás dela a avisou bem a tempo. Irene mergulhou no chão e rolou na hora exata em que uma gárgula desceu gritando com suas garras de pedra esticadas para pegá-la. A gárgula errou o alvo e lutou para subir novamente, com as asas pesadas cortando o ar enquanto se esforçava para ganhar altura. Outra havia descido do telhado da Casa Turquine e voava em círculos em busca do melhor ângulo de ataque.
Esse era um daqueles momentos, refletiu Irene com amargura, em que seria maravilhoso ser uma necromante ou uma bruxa, ou alguém capaz de manipular as forças mágicas do mundo e explodir gárgulas irritantes do céu".
11 - CODA
I
"Gárgulas de pedra que voam... Nunca vi nada igual, mas, se eu existo, vá saber. Bruxas e necromantes conheço, inclusive já vi dessas aqui na biblioteca" - refletia Cousa acerca da página lida.
Foi até o sofá velho e sentou com o livro nas mãos, lendo-o, agora, a partir de seu início. Prometia ser uma noite clama e tranquila, novamente.
II
Escutou as respirações ofegantes e não acreditou que eles estavam de novo transando em cima do Memorial ao Mineiro. Levantou, largou o livro sobre a mesa da auxiliar e foi até as janelas. Eram os mesmos, sentia o cheiro deles e reconheceu. Olhou. Sim, eram eles. Ah, o calor humano, pérfido vício, a dependência que possuem dele. Embriagados, percebo, na fricção genital em busca de prazer pela troca de fluídos. Permaneceu um pouco ali, cheio de nojo, repulsa e curiosidade, assistindo a cena. Achou que iria corporificar.
Decorridos alguns minutos, escutou sussurros vindos dos fundos da Vera Gauss, pelo lado de fora. Alguns instantes depois, era o barulho da basculante do banheiro interditado sendo forçado.
III
Os humanos repetem os mesmos erros, sempre. Hoje são dois. Desejam beber dentro da biblioteca e roubar o computador, interromperão meu sossego e leitura. Ladrõezinhos filhos da puta. Espero que não cometam o erro de pegar o meu livro , como o outro.
Não pegarão, não roubarão livros. Bons garotos, muito bons. Trouxeram um facão. Idiotas. Um está com muito medo, mesmo muito bêbado, sinto sua tensão. O outro é idiota demais para estar tenso e com medo, está, ao contrário, divertindo-se bastante, achando o máximo sua coragem e ousadia.
Estão indo sentar no sofá velho, para beber o resto da vodka vagabunda que trouxeram. Pronto, aqui no meu canto escuro fico bem ao lado deles. Além do calor de seus corpos, sinto o odor nauseabundo de seus hálitos nojentos.
IV
- Lucas, tive a impressão que tem algo aqui do lado, no outro corredor - assustou-se Anderson, o tenso.
- Ah, vai á merda, cara. Devem ser os ratos. Me dá aqui o trago, vai.
- Cara, tô com medo.
- Do que? Do espírito do Zé Xergão? Eh eh eh eh. Tu é bem cagão, mesmo. Bunda-mole! Não tem ninguém aqui, ô cagão.
- Vamo embora?
- Bem capaz! Para de encher o saco, cara. Cala a boca e bebe, senão vou dar com a garrafa na tua cabeça e arrebentar teus miolos, eh eh eh eh.
- Idiota!
- Cagão!
V
Ah, tentação. Mato ou não mato? Dou um susto? Perigoso, muito perigoso, pode estragar pra sempre a minha paz aqui na biblioteca. Não posso cometer esse erro outra vez, agir como um desses humanos.
VI
- Tá, cagão. Vamos andar um pouco aqui dentro, pra ti vê que só tá a gente aqui.
- Tá bom, tá bom.
- Olha ali, tem uns livros com os títulos brilhando ali, com a luz da lua em cima daquela mesa ali.
- Lucas, olha ali.
- Olha o que, porra.
- Ali...
- Onde, porra! Caralho, que porra é essa?
VII
Droga, filhos da puta, fizeram eu me corporificar.
VIII
Um vulto escuro, com cerca de dois metros de altura, estava bem visível na parede junto a entrada do banheiro em funcionamento.
IX
- Tu ouviu? Que gritos foram esses?
- Não sei, não sei. Só não para, tô quase gozando...
- Que não para, vou embora daqui, sabia que não era uma boa ideia vir trepar aqui de novo.
- Ih, olha lá, dois caras correndo feito loucos pelo lado da biblioteca.
- Vamos embora!
- Vamos!
X
Quem acreditaria na história sem pé e sem cabeça de dois guris de merda, bêbados? Ninguém, claro, muito menos os brigadianos que os pegaram no flagra saindo feito loucos da biblioteca.
- Mão na cabeça, vago! Perdeu!
- Deita! vamo, deita!
XI
O casal de maconheiros já atravessara a ERS 401 e ia quase lá pro fim da vila Orvisa. Nunca mais transariam em cima do Memorial ao Mineiro. O cemitério Júlio Rosa era mais tranquilo, havia uns jazigos cobertos excelentes e discretos lá.
XII
Cousa sentou no sofá e retomou tranquilamente sua leitura. O policial finalmente teria seus suspeitos e a cidade mais assunto para as semanas seguintes.
FIM
Charqueadas, 22 à 24 de abril de 2025.