João Adolfo Guerreiro
Descobrindo a verdade/ sem medo de viver/ A liberdade de escolha/ é a fé que faz crescer.
Capa Meu Diário Textos Áudios Fotos Perfil Livros à Venda Livro de Visitas Contato Links
Textos

O último cronista de de de de de Charqueadas

 

Não é bom a ponto de viver das crônicas, mas não ruim a ponto de não publicá-las. Faz sua parte e há quem publique e quem leia e goste e curta e comente. É o último cronista de Charqueadas, o único sobrevivente de sua espécie iniciada pelo Darci Ferrão, mas vive feliz e solta puns de alegria enquanto está sozinho. O prosaico cotidiano é a matéria prima do cronista e nada mais prosaico e cotidiano que flatos, quando íntimos, poupando orelhas e narizes alheios.

 

Para a ilha literária deserta onde reside, levou apenas três exemplares dos anos 1970 da Coleção Pra Gostar de Ler, da Editora Ática, os volumes 1, 2 e 3 - Crônicas, claro. Com essa bíblia literária em mãos, recorda os tempos idos na companhia dos antigos mestres, em seus melhores momentos, acendendo fogueiras com os velhos jornais guardados com suas crônicas, ascendendo o espírito. O destino das crônicas de jornal sempre foi esse mesmo: empacotar ovos, carnes, peixes, fazer artesanato, fogo para churrasco, etc. Agora ele mesmo os utiliza, sem vender ou doar qualquer um que seja. "Ora, porque não guardaram os jornais de vocês?" Os dele são dele, sua réstia de oxigênio literário dos velhos tempos a lhe garantir velhos hábitos nos últimos dias.

 

Quase não existem mais jornais, o habitat natural onde os cronistas surgiram e viveram por séculos. A internet é uma terra sem papel, sem lei e sem fronteiras, inóspita, infestada de youtubers. Nela, o último e único cronista de Charqueadas é um dinossauro que ainda resiste em virar fóssil. Uma atração de circo, na pior hipótese, ou de museu, na melhor. Ultrapassado, mas ainda não obsoleto, assim como o velho T 800 em O Exterminador do Futuro V. Ainda dá seus tiros e acerta certeiro seus alvos: tomem cuidado e não mexam com o cronista, ele ainda consegue ridicularizá-los publicamente com uma bem sacada ironia infame caricaturando um defeito seu que todo mundo vê, mas que ninguém fala. O cronista fará pior: escreverá e publicará.

 

O último cronista sabe que uma boa crônica inicia com uma ideia e que nunca se sabe como ela seguirá e pra onde irá, ao final: toda crônica é uma aventura única, uma partida de futebol onde o imponderável pode acontecer numa jogada que saia do previsto: o cara vai cruzar e acerta o ângulo, como o Ronaldinho Gaúcho na Copa. A crônica é o imprevisto e o imprevisível do jornalismo, ainda. Isso os youtubers não conseguem emular, com seus vídeos hipermegasuperultra editados e premeditados, até nos erros. Já o cronista erra sem ver e isso fica como um quase acerto, que as pessoas gostam, eis que as pessoas gostam de se sentirem verdadeiras e humanas num mundo com falsidade e desumanidade, por isso ainda são leitoras das crônicas do último cronista.

 

O último cronista acorda antes do sol nascer com o espírito do burro falante do Shrek no corpo, com vontade de falar falar falar falar falar, só que não há ninguém acordado para o ouvir ouvir ouvir ouvir ouvir - ainda bem, pois as pessoas acordam já tensas tensas tensas tensas tensas de seus pesadelos para a realidade cruel cruel cruel cruel cruel e fatigante fatigante fatigante fatigante fatigante e se irritam irritam irritam irritam irritam com isso. Então ele vai para o computador e escreve escreve escreve escreve escreve e, enquanto escreve, sorri sorri sorri sorri sorri de suas crônicas engraçadinhas e mesmo das não engraçadas ou tristes, eis que escrever o faz, como a Jaqueline, feliz feliz feliz feliz feliz  - tudo repetido 5x, eis que o último cronista escreve nos cinco dias úteis da semana, de segunda à sexta. Logo, não se acha um deus, pois, nesse caso, descansaria apenas no sétimo dia e não no findi inteiro - assa churrasco pra família no sábado e descansa e vai na Arena no domingo. O ultimo cronista não se acha, é humilde como suas crônicas.

 

O último cronista vive para seus leitores, não dos seus leitores, pois tem um emprego público para poder sobreviver enquanto vive, assim como todos os seus heróis cronistas antes dele, desde Machado de Assis. Cronistas adoram desde sempre concurso público, pois existe vida fora do serviço público. Já na iniciativa privada só existe trabalho trabalho trabalho trabalho trabalho trabalho - 6x por semana. O cronista o sabe, pois já esteve na privada e achou uma bosta e estudou estudou estudou estudou estudou e mudou mudou mudou mudou mudou de vida enquanto assalariado.

 

Sai de sua ilha de carona no caíque a remos de um velho velho velho velho velho pescador, que adora contar contar contar contar contar suas histórias de pescador, que o cronista tem de ouvir ouvir ouvir ouvir ouvir pra retribuir a gentileza. As histórias são repetidas repetidas repetidas repetidas repetidas e velhas velhas velhas velhas velhas como o pescador, não se sabe se são reais, inventadas ou aumentadas, mas são muito boas: o velho pescador é um ótimo e engraçado contador de histórias e nunca cansa os ouvidos do último cronista. O velho pescador dá suas últimas remadas e conta suas únicas histórias para o último e único cronista de Charqueadas.

 

O último cronista chega em casa e seu gato preto Adão espera na porta pra entrar e filar o pão. Adão é um oportunista mião, como todos os gatos o são e mia mia mia mia mia. O último cronista sente vontade de ir ao banheiro pela primeira e única vez no dia, por sólidos motivos - nada mais prosaico, cotidiano, real e humano do que isso. Então é hora de encerrar a crônica do dia. Ir para a privada estimula a pensar e, quem pensa pensa pensa pensa pensa não escreve, bem sabe o último e único cronista de Charqueadas.

 

Um ótimo findi para todos. Cuidem-se, vacinem-se, vivam vivam vivam vivam vivam e e e e e fiquem com Deus.

 

João Adolfo Guerreiro
Enviado por João Adolfo Guerreiro em 21/02/2025
Alterado em 21/02/2025
Comentários