Bom dia, amigos do Recanto. A D O R E I essa crônica do Carlos Drummond de Andrade e a republico aqui pra vocês, 71 anos depois de CDA a escrever e 126 após o referido anúncio. Achei-a recentemente num livro velho (imagem acima) que comprei de Wagner Kuhn. Especificarei a fonte no final. Boa leitura de domingo!
ANÚNCIO DE JOÃO ALVES
Figura o anúncio em um jornal que o amigo me mandou, e está assim redigido:
𝙰 𝚙𝚛𝚘𝚌𝚞𝚛𝚊 𝚍𝚎 𝚞𝚖𝚊 𝚋𝚎𝚜𝚝𝚊. – 𝙰 𝚙𝚊𝚛𝚝𝚒𝚛 𝚍𝚎 𝟼 𝚍𝚎 𝚘𝚞𝚝𝚞𝚋𝚛𝚘 𝚍𝚘 𝚊𝚗𝚘 𝚌𝚊𝚍𝚎𝚗𝚝𝚎, 𝚜𝚞𝚖𝚒𝚞-𝚖𝚎 𝚞𝚖𝚊 𝚋𝚎𝚜𝚝𝚊 𝚟𝚎𝚛𝚖𝚎𝚕𝚑𝚘-𝚎𝚜𝚌𝚞𝚛𝚊 𝚌𝚘𝚖 𝚘𝚜 𝚜𝚎𝚐𝚞𝚒𝚗𝚝𝚎𝚜 𝚌𝚊𝚛𝚊𝚌𝚝𝚎𝚛𝚒𝚜𝚝𝚒𝚌𝚘𝚜: 𝚌𝚊𝚕𝚌𝚊𝚍𝚊 𝚎 𝚏𝚎𝚛𝚛𝚊𝚍𝚊 𝚍𝚎 𝚝𝚘𝚍𝚘𝚜 𝚘𝚜 𝚖𝚎𝚖𝚋𝚛𝚘𝚜 𝚕𝚘𝚌𝚘𝚖𝚘𝚝𝚘𝚛𝚎𝚜, 𝚞𝚖 𝚙𝚎𝚚𝚞𝚎𝚗𝚘 𝚚𝚞𝚒𝚜𝚝𝚘 𝚗𝚊 𝚋𝚊𝚜𝚎 𝚍𝚊 𝚘𝚛𝚎𝚕𝚑𝚊 𝚍𝚒𝚛𝚎𝚒𝚝𝚊 𝚎 𝚌𝚛𝚒𝚗𝚊 𝚍𝚒𝚟𝚒𝚍𝚒𝚍𝚊 𝚎𝚖 𝚍𝚞𝚊𝚜 𝚜𝚎𝚌𝚘𝚎𝚜 𝚎𝚖 𝚌𝚘𝚗𝚜𝚎𝚚𝚞𝚎𝚗𝚌𝚒𝚊 𝚍𝚎 𝚞𝚖 𝚐𝚘𝚕𝚙𝚎, 𝚌𝚞𝚓𝚊 𝚎𝚡𝚝𝚎𝚗𝚜𝚊𝚘 𝚙𝚘𝚍𝚎 𝚊𝚕𝚌𝚊𝚗𝚌𝚊𝚛 𝚍𝚎 𝚚𝚞𝚊𝚝𝚛𝚘 𝚊 𝚜𝚎𝚒𝚜 𝚌𝚎𝚗𝚝𝚒𝚖𝚎𝚝𝚛𝚘𝚜, 𝚙𝚛𝚘𝚍𝚞𝚣𝚒𝚍𝚘 𝚙𝚘𝚛 𝚓𝚞𝚖𝚎𝚗𝚝𝚘.
𝙴𝚜𝚜𝚊 𝚋𝚎𝚜𝚝𝚊, 𝚖𝚞𝚒𝚝𝚘 𝚍𝚘𝚖𝚒𝚌𝚒𝚕𝚒𝚊𝚍𝚊 𝚗𝚊𝚜 𝚌𝚎𝚛𝚌𝚊𝚗𝚒𝚊𝚜 𝚍𝚎𝚜𝚝𝚎 𝚌𝚘𝚖𝚎𝚛𝚌𝚒𝚘, 𝚎 𝚖𝚞𝚒𝚝𝚘 𝚖𝚊𝚗𝚜𝚊 𝚎 𝚋𝚘𝚊 𝚍𝚎 𝚜𝚎𝚕𝚊, 𝚎 𝚝𝚞𝚍𝚘 𝚖𝚎 𝚒𝚗𝚍𝚞𝚣 𝚊𝚘 𝚌𝚊𝚕𝚌𝚞𝚕𝚘 𝚍𝚎 𝚚𝚞𝚎 𝚏𝚘𝚒 𝚛𝚘𝚞𝚋𝚊𝚍𝚊, 𝚊𝚜𝚜𝚒𝚖 𝚚𝚞𝚎 𝚑𝚊𝚘 𝚜𝚒𝚍𝚘 𝚏𝚊𝚕𝚑𝚊𝚜 𝚝𝚘𝚍𝚊𝚜 𝚊𝚜 𝚒𝚗𝚍𝚊𝚐𝚊𝚌𝚘𝚎𝚜.
𝚀𝚞𝚎𝚖, 𝚙𝚘𝚒𝚜, 𝚊𝚙𝚛𝚎𝚎𝚗𝚍𝚎-𝚕𝚊 𝚎𝚖 𝚚𝚞𝚊𝚕𝚚𝚞𝚎𝚛 𝚙𝚊𝚛𝚝𝚎 𝚎 𝚊 𝚏𝚒𝚣𝚎𝚛 𝚎𝚗𝚝𝚛𝚎𝚐𝚞𝚎 𝚊𝚚𝚞𝚒 𝚘𝚞 𝚙𝚎𝚕𝚘 𝚖𝚎𝚗𝚘𝚜 𝚗𝚘𝚝𝚒𝚌𝚒𝚊 𝚎𝚡𝚊𝚝𝚊 𝚖𝚒𝚗𝚒𝚜𝚝𝚛𝚊𝚛, 𝚜𝚎𝚛𝚊 𝚛𝚊𝚣𝚘𝚊𝚟𝚎𝚕𝚖𝚎𝚗𝚝𝚎 𝚛𝚎𝚖𝚞𝚗𝚎𝚛𝚊𝚍𝚘. 𝙸𝚝𝚊𝚖𝚋𝚎 𝚍𝚘 𝙼𝚊𝚝𝚘 𝙳𝚎𝚗𝚝𝚛𝚘, 𝟷𝟿 𝚍𝚎 𝚗𝚘𝚟𝚎𝚖𝚋𝚛𝚘 𝚍𝚎 𝟷𝟾𝟿𝟿. (𝚊) 𝙹𝚘𝚊𝚘 𝙰𝚕𝚟𝚎𝚜 𝙹𝚞𝚗𝚒𝚘𝚛.
Cinquenta e cinco anos depois, prezado João Alves Júnior, tua besta vermelho-escura, mesmo que tenha aparecido, já é pó no pó. E tu mesmo, se não estou enganado, repousas suavemente no pequeno cemitério de Itambé. Mas teu anúncio continua um modelo no gênero, se não para ser imitado, ao menos como objeto de admiração literária.
Reparo antes de tudo na limpeza de tua linguagem. Não escreveste apressada e toscamente, como seria de esperar de tua condição rural. Pressa, não a tiveste, pois o animal desapareceu a 6 de outubro, e só a 19 de novembro recorreste à Cidade de Itabira. Antes, procedeste a indagações. Falharam. Formulaste depois um raciocínio: houve roubo. Só então pegaste da pena, e traçaste um belo e nítido retrato da besta.
Não disseste que todos os seus cascos estavam ferrados; preferiste dizê-lo “de todos os seus membros locomotores”. Nem esqueceste esse pequeno quisto na orelha e essa divisão da crina em duas seções, que teu zelo naturalista e histórico atribuiu com segurança a um jumento.
Por ser “muito domiciliada nas cercanias deste comércio”, isto é, do povoado e sua feirinha semanal, inferiste que não teria fugido, mas antes foi roubada. Contudo, não o afirmas em tom peremptório: “tudo me induz a esse cálculo”. Revelas aí a prudência mineira, que não avança (ou não avançava) aquilo que não seja a evidência mesma. É cálculo, raciocínio, operação mental e desapaixonada como qualquer outra, e não denúncia formal.
Finalmente – deixando de lado outras excelências de tua prosa útil – a declaração final: quem a apreender ou pelo menos “notícia exata ministrar”, será “razoavelmente remunerado”. Não prometes recompensa tentadora; não fazes praça de generosidade ou largueza; acenas com o razoável, com a justa medida das coisas, que deve prevalecer mesmo no caso de bestas perdidas e entregues.
Já é muito tarde para sairmos à procura de tua besta, meu caro João Alves do Itambé; entretanto essa criação volta a existir, porque soubeste descrevê-la com decoro e propriedade, num dia remoto, e o jornal a guardou e alguém hoje a descobre, e muitos outros são informados da ocorrência. Se lesses os anúncios de objetos e animais perdidos, na imprensa de hoje, ficarias triste. Já não há essa precisão de termos e essa graça no dizer, nem essa moderação nem essa atitude crítica. Não há, sobretudo, esse amor à tarefa bem-feita, que se pode manifestar até mesmo num anúncio de besta sumida.
Fonte:
Quadrante 2ª edição. Drummond e outros. Organizador: Murilo Miranda. Editora do Autor, Rio de Janeiro, 1963.