Dia propício para escrever sobre esse filme, eis que hoje marca os dois anos dos atentados antidemocráticos e golpistas aos Três Poderes da República em Brasília, logo após a posse legítima do presidente Lula, ungido pelas urnas no ano anterior.
O legal de Ainda Estou Aqui é que ele não é panfletário, acusatório ou ideológico, mas tão somente dramático, mostra o drama particular da família Paiva em janeiro de 1971, quando da prisão, tortura e execução do ex-deputado federal do PTB Rubens Paiva, cassado pelo Golpe Militar de 1964. Paiva, ativo parlamentar linha de frente do governo João Goulart, deposto pelo golpe, não era membro de um grupo de luta armada, logo, não enfrentava o regime pelas armas. Na verdade, nem o enfrentava, apenas ajudava alguns perseguidos pelo regime, como o filme mostrará a quem o assistir.
Assim, seu assassinato só mostra o profundo descontrole do regime sobre a sociedade, tanto que os militares mesmo, a partir dos governos Geisel e João Figueiredo, corrigiriam os rumos visando a abertura política e isolando a linha dura. Junto com Paiva, sua esposa e uma das filhas foram levadas, a segunda liberada no mesmo dia, enquanto Eunice permaneceu incomunicável por semanas. E é da luta de Eunice Paiva para criar os filhos e saber do marido que o filme trata, com muita sensibilidade humana.
A família, além do baque do sumiço paterno, teve de lidar com uma forte queda de padrão de vida, eis que Rubens Paiva era engenheiro que atuava profissionalmente na área, bem sucedido, tanto que moravam perto da praia, no Rio de Janeiro. Como o regime cinicamente o considerava foragido, o dinheiro da família ficou retido no banco, eis que somente com a assinatura do titular da conta ela poderia ser movimentada. Somente em 1996 a viúva obteve o atestado de óbito de Paiva, sendo que seu corpo jamais foi encontrado e os envolvidos em seu assassinato jamais punidos. Ao final do regime militar, a Anistia beneficiou a todos, contra ou a favor do regime.
O perturbador de Ainda Estou Aqui é vermos o que uma ditadura é capaz de fazer com as pessoas em seu cotidiano, destroçando-o. Qualquer ditadura em qualquer lugar do mundo. No caso de nós, brasileiros, o é ainda mais, visto que se trata da gente. Por isso, emociona, toca, choca, entristece, faz refletir.
Vejam, portanto, do que nos livraram os ministros do Exército e da Aeronáutica quando, em dezembro de 2022, conforme desvendaram a Polícia Federal e o STF, peitaram o presidente derrotado nas urnas e seu grupo mais próximo, opondo-se aos apelos golpistas. Por isso sou contrário a anistia que é proposta por políticos no Congresso Nacional, visto que ela só serviria como estímulo a uma nova tentativa antidemocrática. Em 1961 foi assim, deixaram barato, daí veio 1964...
Ao final de Ainda Estou Aqui, fica claro o que apoiam, na prática, as pessoas que defendem a Ditadura ou pedem intervenção militar. A tragédia dos Paiva, um exemplo do muito que ocorreu e vitimou brasileiros nos anos 1960 e 1970, é um sinal de alerta histórico para a sociedade brasileira. Valeu, Walter Salles. Seu filme, além de delicado e primoroso, é necessário e oportuno.