João Adolfo Guerreiro
Descobrindo a verdade/ sem medo de viver/ A liberdade de escolha/ é a fé que faz crescer.
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Textos

Capote & Lee Ltda, Monroeville

 

1926 foi um grande ano nos Estados Unidos da América - EUA. Em Los Angeles, Califórnia, na Costa do Pacífico, Marilyn Monroe nascia a 1º de julho de 1926 e, um pouco antes, em 28 de abril do mesmo ano, vinha ao mundo Nelle Harper Lee, em Monroeville, Condado de Monroe, Alabama, no outro lado do mapa estadunidense. Não, Monroeville não era a "vila de Marilyn Monroe" e tampouco o condado era uma homenagem à atriz de Hollywood, é só coincidência, pois a diva loira-platinada imortal (que era ruiva de nascença) só aconteceria nas telas de cinema nos anos 1950, ao passo que Lee nasceria para a literatura e para o mundo, em grande estilo, diga-se, em um mesmo 1º de julho, só que de 1960, ao publicar seu primeiro e único romance em vida, O Sol é Para Todos (To Kill a Mockingbird). O condado e a cidade homenageiam John Monroe, quinto presidente dos EUA, que também não era antepassado de Marilyn.

 

Enfim, dois símbolos femininos dos EUA, inteligentes e ávidas leitoras - sim, Marilyn era culta e foi casada com um grande escritor, Arthur Miller. Entretanto, como o título da crônica é Capote & Lee, vamos aquele que escreveu sobre e dançou com a loira atriz e foi amigo e parceiro desde a infância da morena escritora: Truman Capote, que nasceu Truman Streckfus Persons em 30 de setembro de 1924 em New Orleans e faleceu em 25 de agosto de 1984 na mesma Los Angeles onde Monroe - a atriz, não o presidente - nasceu, viveu e morreu em 4 de agosto de 1962. Em 1933, sua mãe foi para New York com seu segundo marido, um cubano que adotou Truman e mudou seu nome para Truman Garcia Capote. Antes disso, com o divórcio dos pais, Truman ia para a casa de tios maternos no Alabama. Sim, como vocês já devem ter suposto, era justamente para Monroeville, onde conheceu Harper Lee. As crianças se identificaram por serem diferentes, inteligentes e terem aprendido a ler e a escrever sozinhas muito cedo, selando uma amizade e uma parceria que duraria décadas. Mas que baita coincidência, né? Os kardecistas podem achar que não...

 

Vejam só, Monroeville é, hoje, uma cidade de 6.500 habitantes num condado que possui 19.400, no total - a região Carbonífera tem 150 mil habitantes! É como se fosse uma General Câmara localizada em Butiá, pois também não existe rio em seu território e fica a 70 metros acima do nível do mar - a parte mais alta da zona urbana de Charqueadas fica a 30. Como seria na década de 1930, quando Harper e Capote se conheceram, período em que é ambientado O Sol é Para Todos, durante a Grande Depressão Americana que se seguiu a Quebra da Bolsa de Valores de New York (1929)? Era o fim do mundo, claro, uma cidadezinha nos confins do Alabama, em pleno Cinturão da Bíblia, no Sul protestante e segregacionista onde o racismo era institucionalizado: branco num lado, o de cima; preto no outro, o de baixo. Pois assim como perguntaram na Bíblia se poderia vir alguma coisa de boa de Nazaré - o fim do mundo na antiga Israel -, também o mesmo se poderia perguntar de Monroeville. Incrivelmente, Harper e Truman saíram de lá, dois grandes escritores estadunidenses. O improvável do improvável do improvável, mas aconteceu.

 

Truman foi mais cedo para New York, para onde Harper iria em somente em 1949, após estudar na Inglaterra, em Oxford, bancada pelo pai. Em New York, os contatos literários do já estabelecido Capote ajudaram Harper a encontrar um editor que se interessasse pelo seu livro de estreia, parido à forceps após intensas crises criativas da escritora iniciante. Deu muito certo: O Sol é Para Todos ganhou o Prêmio Pulitzer - o Jabuti dos gringos - em 1961 e virou filme em Hollywood em 1962, estrelado por Gregory Peck no papel de Atticus e um jovem Robert Duval como Boo Radley, tendo recebido três Oscars. Foi tudo tão bom e grandioso que ela nem escreveu mais nada em vida, assim como a igualmente incensada Margareth Mitchell de ...E o Vento Levou, em 1936. Duas grandes escritoras sulistas de uma obra só.

 

Só que, enquanto o romance de Mitchell é uma obra tardia inserida na linha revisionista sulista contrária à literatura estadunidense crítica à escravidão, iniciada por Harriet Stowe com A Cabana do Pai Tomás (1852) - que geraria bases ideológicas para a Guerra Civil Americana (1861 - 1865) -, o livro de Harper Lee é uma crítica ferrenha ao segregacionismo racial justamente no início dos anos 1960, onde pessoas como o pastor Martin Luther King iniciam sua caminhada pelos direitos civis dos pretos e o presidente John Kennedy cria as cotas raciais - que décadas depois seriam implementadas aqui no Brasil. Foi a década do Paz & Amor dos hippies, do Verão do Amor em San Francisco, da Revolta de Stonewall, do Festival de Woodstock, dos Panteras Negras e da contracultura, não podemos esquecer. Inserido nesse contexto, dá pra se ter uma ideia do impacto do livro de Lee, ainda mais sendo ela uma sulista do Cinturão da Bíblia, ou seja, um golpe dado por dentro no racismo confederado.

 

Para se ter um ideia de como era a coisa, lá pelas páginas 184 e 185 de O Sol é Para Todos, dependendo da edição, vemos Atticus, advogado branco hostilizado por defender um negro acusado de ter estuprado uma branca, falando com seu filho Jem, um diálogo que dá uma boa ideia do que era o Sul protestante retratado no livro:

" - Eles vieram atrás de você, não foi? - Jem perguntou - Queriam pegar você, não queriam?

(...) - Não, filho, aqueles homens são nossos amigos.

- Não eram... uma gangue? - Jem olhava desconfiado.

(...) - Não, não temos quadrilhas e bobagens assim em Maycomb. (...)

- A Ku Klux Kan perseguiu os católicos uma vez.

- Também nunca ouvi falar de católicos em Maycomb."

 

Um outro detalhe: o livro menciona Hitler e, assim, confirma a tese de que uma obra fala mais sobre o tempo em que é escrita do que sobre o tempo em que é ambientada. Na escola, a professora de Scout fala mal de Hitler para as crianças, dizendo que ele persegue os judeus na Alemanha. Isso dá oportunidade para a esperta e inteligente menina se perguntar: porque ela não gosta de Hitler por perseguir os judeus e, em Monroeville, faz parte dos que discriminam e perseguem os negros? Tudo ok, só que sabemos que, entre os anos 1932 - 36, quando se passa a história, não havia essa imagem do líder nazista nos EUA, visto que, em 1938, ele chegou a ser eleito Homem do Ano pela revista Time... Em 1960, quando o livro foi finalizado e publicado, daí sim, Hitler já era uma encarnação do mal.

 

O romance de Harper Lee é semiautobiográfico: Atticus é inspirado no seu pai, Jem em um dos seus irmãos, ela aparece como Scout, Maycomb é Monroeville e o amigo de infância, Dill, em Truman Capote. Este, por sua vez, teria dois grandes sucessos literários em sua longa bibliografia: Bonequinha de Luxo (1958) e A Sangue Frio (1966). O primeiro, virou filme em 1961, estrelado por Audrey Hepburn e Mickey Rooney, ganhou dois Oscars e virou um clássico hollywoodiano; o segundo, é o marco inicial do romance de não ficção, pois se baseia num fato real, um crime ocorrido no Kansas, quando uma família foi assassinada. O livro fez enorme sucesso, tornando seu autor um homem rico. Detalhe: Harper Lee, antes ajudada pelos contatos literários do amigo de infância, retribuiu: foi para o Kansas com Capote e teve atuação fundamental no trabalho de campo, ajudando o amigo a se enturmar com as pessoas para conseguir seus depoimentos. Dentre outros, A Sangue Frio foi dedicado a Harper Lee, "com amor". Interessante esse detalhe, pois em O Sol é Para Todos, a relação entre Scout e Dill é retratada uma via amorosa de suas mãos.

 

Depois disso, dizem por aí que a relação azedou, eis que Lee achou pouca a dedicatória em relação a todo o seu essencial esforço colaborativo, não mencionado. O escritor e romancista charqueadense Max Belzareno, por exemplo, refletindo sobre a vida e a obra de Capote, vai por essa opinião: "Era um deslumbrado. Aposto que se mordeu de inveja quando viu que a amiga, com apenas um livro, tinha alcançado um lugar que ele não conseguiu com vários livros". Max vai ainda mais longe: "O Capote era uma pessoa mega polêmica e, acredito, com desvio de caráter, alguém que fazia tudo pela fama. Puxou o tapete de vários artistas da antiga Hollywood, revelou em livro segredos desses artistas sem consentimento, certamente para bombar. Duvido que não se importasse com a ascensão da velha amiga. Ele queria isso pra si, quis a vida toda".

 

Capote era realmente polêmico, lembro dele mencionado nas revista de rock dos anos 1980, por acompanhar os artistas. Uma vez, Peter Grant, empresário do Led Zeppelin, reclamou que a imprensa ignorava que a banda lotava seus shows pelos EUA, enquanto reproduzia textos de Capote sobre a turnê dos Rolling Stones. Numa dessas histórias, Capote fez o relato do jovem médico da banda, no avião da mesma, praticando intensamente o Kama Sutra com uma groupie durante um voo. Existem N histórias de e sobre Capote, mas fiquemos por aqui. O fato é que ele era um homossexual do jet set que curtiu a vida adoidado e Lee uma uma reclusa que se estabeleceu em Monroeville, sem casamento ou filhos, para o resto da vida.

 

Uma longa vida, pois ela faleceu em 19 de fevereiro de 2016, pouco mais de dois meses antes de seu aniversário de 90 anos. Em setembro teremos os 100 anos do nascimento de Capote e, em agosto, os quarenta de sua morte. O que importa nisso tudo é a incrível história desses dois amigos de infância que se tornaram dois grandes escritores estadunidenses, mesmo vindos da inexpressiva Monroeville.

 

O livro O Sol é Para Todos será debatido na quarta-feira, às 19 horas, na Biblioteca Municipal Vera Gauss, pelo Clube do Livro de Charqueadas. Ainda dá tempo de ler e participar, existem exemplares disponíveis na biblioteca para empréstimo. Já li, é excelente, megaultrahipersuper recomendo.

 

Uma boa semana para todos. Cuidem-se, vacinem-se, leiam, ajudem os atingidos pela enchente, vivam e fiquem com Deus.

 

 

João Adolfo Guerreiro
Enviado por João Adolfo Guerreiro em 15/07/2024
Alterado em 15/07/2024
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