Foi uma deliciosa semana ensolarada e de tempo bom, com temperaturas em volta dos trinta graus. Um veranico prolongado de inverno, uma benção necessária após a enchente que ainda faz notar seus reflexos na vida das pessoas. Não lembro de tantos dias quentes assim num inverno, nem quando era criança pequena lá na Colônia e estudava no Ramiro Barcellos do prédio antigo, entre a igreja e a penitenciária e perto do casarão. Tudo está mudando, o clima está mudando.
Em novembro de 1924, há cem anos, o escritor judeu alemão Thomas Mann (1875 - 1955) - cuja mãe era brasileira - lançava o romance A Montanha Mágica, no qual trabalhou desde 1912 e que o levou ao Prêmio Nobel de Literatura em 1929 - ano da Grande Depressão nos EUA. Nele, bem no início, no Propósito, disse mais ou menos que o tempo não se conta em anos, mas sim em transformações, ou seja, se formos contar uma história, mais antiga é aquela que, mesmo recente, se dá entre transformações sociais profundas, do que as que estão num passado longínquo, mas ocorridas dentro de um mesmo paradigma histórico - lembra um pouco os "tempos diferenciados" do historiador francês Fernand Braudel (1902 - 1985), que deve ter lido o romance.
Em 1924, após a pandemia da Gripe Espanhola de 1918, Hitler ainda não chegara ao poder na Alemanha, mas o totalitarismo já era uma realidade ascendente no mundo. A Segunda Guerra Mundial aconteceria de 1939 à 1945, antecedida pela Guerra Civil Espanhola (1936 - 39) e pela Revolução Russa (1917), todos elementos fundantes de nosso paradigma das últimas décadas.
Voltando para o presente e para a nossa geração aqui no Rio Grande do Sul, podemos dizer que passamos por eventos históricos e únicos, uma pandemia e uma enchente. Minha mãe, por exemplo, nasceu em janeiro de 1944 e faleceu em setembro de 2021, logo, não viu a Gripe Espanhola, a Enchente de 1941, a Enchente de 2024 e igualmente não presenciou o fim da Pandemia de Covid-19. Somos uma geração "privilegiada"? Será que dá pra dizer isso daqueles que passaram por um momento que levou tantas vidas e por outro que levou tantos pertences e negócios? Creio que não, mas tudo é aprendizado e tais circunstâncias estabeleceram um corte na estrutura da sociedade, chegando a se falar em um "novo normal", seja lá o que isso seja ou venha a ser, tipo assim enquescosquilhas. O que virá, ao certo? Não sabemos, mas aprendemos muito nesse processo sobre a sociedade, sobre as pessoas e sobre nós, em suma, sobre a gente. Foi pedagógico, como o são todas as "situações limite" conceituadas pelo filósofo alemão Karl Jaspers (1883 - 1869).
Falando nele, que foi orientador do doutorado da filósofa judia alemã Hannah Arendt (1906 - 1975) - a primeira que investigou o fenômeno totalitário em As Origens do Totalitarismo (1951) e sua correspondente "banalidade do mal" em Eichmann em Jerusalém (1963) -, podemos pensar no que a Guerra da Ucrânia e o conflito Gaza/Israel significam atualmente, como reveladoras de uma nova ordem mundial que surge concomitantemente às alterações climáticas e a um recrudescimento da extrema-direita no mundo e de uma nova contestação desta aos pilares da democracia liberal e suas instituições - junto com um negacionismo avesso à ciência -, como ocorreu no início do século XX na Europa. Em 1924, quem diria que a comunista - e, segundo Arendt, totalitária - União Soviética (URSS, 1922 - 1991) lutaria ao lado das nações liberais democráticas na Segunda Guerra contra o Eixo totalitário - e seria decisiva para sua derrota - formado por Alemanha nazista, Itália fascista e Japão militarista? Quem diria, no início dos anos 1980, que a URSS acabaria e a Rússia se tornaria um país capitalista selvagem e formador de bilionários na década de 1990? E quem diria, nos últimos trinta anos, que esse mesmo país, de novamente amigo do Ocidente liberal como na Segunda Guerra, invadiria a Ucrânia em 2022 num confronto com OTAN e União Europeia?
Uma nova ordem mundial surge, agora com a economia da China e as armas da Rússia de um lado e os EUA e Europa de outro. Ao resto, a periferia do mundo, o Brasil nela incluso, resta se adaptar. Ainda no final da vigência da velha ordem pós Segunda Guerra, o Brasil entrou no bloco BRICS, mas agora pode ser que tenha de tomar um lado, não mais podendo negociar e ser parceiro de todo mundo. Teremos de sair de cima do muro? O fato é que estamos aprendendo com essas guerras todas também, vendo o tremendo saco de gatos que Ucrânia, Rússia, EUA, OTAN, União Europeia, Gaza e Israel são, ou seja, se matam e mentem em busca de seus interesses antagônicos, esquecendo a bosta que isso pode dar. Quem imaginou durante a Guerra Fria (1947 - 1991) os EUA autorizando alguém a usar seus mísseis contra os russos? Quem imaginou navios militares russos de volta à Cuba, assim como na Crise dos Mísseis (1962)? Quem imaginou a Rússia oferecendo armas de longo alcance para inimigos dos EUA, como o Irã? Podemos ver hoje o engodo e a farsa que essas trágicas guerras são, dentro do xadrez econômico e militar da geopolítica mundial, do papel das grandes mídias como panfletárias de um lado ou de outro do jogo, mostrando que a verdade continua sendo a primeira vítima das guerras.
Em 1933, Mann foi um judeu alemão que viu a bosta que a chegada de Hitler ao poder na Alemanha ia dar e se mandou. Os que ficaram ou não tiveram como sair, morreram. Se ocorrer uma terceira guerra mundial, nuclear, ninguém escapará, todos morreremos. Muito difícil dizer se caminhamos para isso, pois ninguém quer morrer, os objetivos são grana e poder para gozar de uma vida longa e próspera. O certo é que caminhamos para algo diferente, nós, o planeta, a humanidade, o Brasil e o Rio Grande do Sul. Para alguma enquescosquilhas.
"Mas, para não se obscurecer de forma artificial um estado de coisas claro em si, seja dito que a idade sumamente avançada de nossa história provém do fato de ela se desenrolar antes de determinada peripécia e de certo limite que abriram um sulco nas vidas e consciências dos homens..." (Thomas Mann, 1924).
O sol caiu e faz um bela noite de sexta-feira em Charqueadas, convidativa para um saída para um chopp cremoso como os do saudoso cronista gaúcho David Coimbra. Um bom final de semana para todos. Cuidem-se, vacinem-se, ajudem os atingidos pela enchente, vivam e fiquem com Deus.