Existem duas grandes escritoras da língua inglesa que possuem em comum o fato de terem escrito apenas um livro na vida e antes dos 30 anos, ambos grandes clássicos da literatura mundial: a inglesa Emily Brontë (O Morro dos Ventos Uivantes, 1847) e a estadunidense Margaret Mitchell (...E o Vento Levou, 1936). Nenhuma viveu muito: Emily morreu de tuberculose aos 30 e Margaret aos 48, atropelada. Mitchell era jornalista e filha de um historiador especializado justamente na Guerra Civil Americana (1861 - 1865) quando escreveu seu magnífico romance nela ambientado, já Brontë era uma das três filhas sobreviventes e solteiras de um pastor luterano que residia num presbitério nos confins da Inglaterra vitoriana rural. Como conseguiu escrever, assim, um clássico denso e profundo como O Morro dos Ventos Uivantes? Inacreditável a senhorita Brontë!
Nasceu em 30 de julho de 1818 e faleceu em 19 de dezembro de 1848. Suas duas irmãs (Charlotte e Anne) e seu irmão (Patrick) possuíam, assim como Emily, um enorme apetite literário, tanto para a leitura quanto para a escrita. Passaram a infância e a adolescência criando reinos e histórias imaginárias. O escritor Rodrigo Lacerda, em seu texto introdutório à edição comentada da editora Zahar de O Morro Dos Ventos Uivantes, em 2016, afirma que "não é comum haver, na mesma família, grande concentração de talentos literários. Ainda mais raro, sobretudo na Inglaterra do século XIX, achar três irmãs escritoras. A raridade vira quase milagre quando as três são ótimas no que fazem" (2016, p. 7). Inacreditáveis as irmãs Brontë! As três se tornaram romancistas consagradas: Charlotte com Jane Eyre (1847), Anne com Agnes Grey (1847) e Emily com O Morro dos Ventos Uivantes. Na época, o livro de Charlotte, que aborda pioneiramente os direitos femininos na sociedade vitoriana, fez mais sucesso, mas com o passar do tempo o romance de Emily se tornaria icônico.
Uma pessoa reclusa, tímida, introspectiva e introvertida, pouco afeita à interação social, mas dona de um inteligência poderosa: assim Emily era descrita pelas pessoas que com ela conviveram. "Ela deveria ter nascido homem - um grande navegador. Sua inteligência poderosa teria produzido novas esferas de descobertas a partir do conhecimento acumulado pelas antigas; e sua vontade férrea jamais teria se acovardado por qualquer oposição ou dificuldade (...). Tinha cabeça para a lógica e uma capacidade de argumentação pouco usual em um homem, quem dirá para uma mulher" (2016, p. 9) - escreveu um impressionado Constantin Héger, famoso pedagogo belga para o qual Charlotte e Emily trabalharam em 1842. Já um desconhecido jornalista que resenhou seu romance quando publicado ressaltou: "Esse é um trabalho que demonstra grande habilidade e muitos capítulos, para cuja produção um talento raro foi necessário. Ao mesmo tempo, os materiais que o autor colocou à sua disposição foram escassos. Nos recursos de sua própria mente e em suas evidentemente vívidas percepções das peculiaridades de caráter - em resumo, em seu conhecimento da natureza humana - ele encontrou tudo o que precisava" (2016, p. 19).
Sua irmã Charlotte, na década de 1850, em revelador prefácio de uma reedição de O Morro dos Ventos Uivantes, destacou: "Ele (o romance) é rústico de ponta a ponta. É típico das charnecas, selvagem e nodoso como uma raiz de urze. Não seria natural que fosse de outra maneira, sendo a autora ela própria nascida e criada nas charnecas. Sem dúvida, tivesse sua sorte sido lançada numa cidade, seus escritos, se é que ela escreveria alguma coisa, teriam outro caráter" (2016, p. 369). Acrescentou: "O escritor dotado da dádiva criativa possui algo que nem sempre domina - algo que por vezes, estranhamente, deseja e age por si mesmo. Ele pode estabelecer regras e criar princípios" (2016, p. 371). E esclareceu: "O Morro dos Ventos Uivantes foi talhado numa oficina rústica, com ferramentas simples, a partir de materiais grosseiros. (...) Ela trabalhou com um rude cinzel e sem nenhum modelo, a não ser o que via em suas meditações" (2016, p. 372). Em 1001 Livros para Ler Antes de Morrer, o professor de literatura comparada Seb Franklin define o romance como "uma história de amor completamente psicótica", que "se destaca como a expressão mais violenta já escrita do resultado do ascetismo e isolamento extremos" (2010, p. 126). Concordo, quem leu a obra sabe que ela é visceral, criada por uma jovem escritora que só poderia ser classificada como uma força da natureza, como se diz.
O famoso crítico literário francês dos anos 1950 e 60, Georges Bataille, foi ainda mais longe: "Entre todas as mulheres, Emily Brontë parece ter sofrido uma maldição privilegiada. Sua efêmera vida foi infeliz apenas moderadamente. Mas, sua pureza moral intacta, ela teve do abismo do Mal uma experiência profunda. Ainda que poucos seres tenham sido mais rigorosos, mais corajosos, mais retos, ela foi até o fim do conhecimento do Mal. (...) Deixava [ao morrer] um pequeno número de poemas e um dos mais belos livros da literatura de todos os tempos, O Morro dos ventos Uivantes. Talvez a mais bela, a mais profundamente violenta das histórias de amor..." (1989, p. 11-12).
Na próxima quarta-feira, dia 27, às 19 horas, na Biblioteca Pública Municipal Vera Gauss, no Parcão de Charqueadas, o Clube do Livro de Charqueadas estará justamente debatendo O Morro dos Ventos Uivantes. A participação é livre e os interessados podem pegar por empréstimo um exemplar do livro na biblioteca.
Leia mais:
Emily Brontë, 200 anos: ventos uivantes, pulmões frágeis
Fontes:
BATAILLE, Georges. A literatura e o Mal. Porto Alegre: L&PM, 1989.
BOXAL, Peter. 1001 livros para ler antes de morrer. Rio de Janeiro: Sextante, 2010.
BRONTË, Emily. O morro dos ventos uivantes: edição comentada. Rio de Janeiro: Zahar, 2016.