Cedo da noite. Esticado na cama de bruços, sobre as cobertas, observa o quarto tenuamente iluminado pela luz fraca da lâmpada amarela a ultrapassar o vidro martelado da janela de ferro. Não está muito frio, apenas sente a temperatura pela pele da perna exposta que sobra entre o limite das meias longas e o alcance do roupão. No mais, tudo é conforto e bem estar, um momento agradável. Aprecia o som da chuva lá fora e a respiração da filha adormecida ao lado. Encanta-o percebê-la assim, protegida, bonita e serena. Libera o pensamento pra voar à vontade e o primeiro lugar pra onde vai é para o cemitério, olhando a chuva cair sobre a laje negra do túmulo dos pais. Assusta-se e incomoda-se por o pensamento ter ido pra lá, sem alcançar o motivo de. Pensamento é algo traiçoeiro e surpreendente, quando tu o deixas seguir o próprio arbítrio: é parte de ti que não controlas ou entendes. Estarão também protegidos da intempérie lá dentro, os pais? Será uma visão reconfortante, mesmo eles estando mortos? É a recente e definitiva morada deles neste plano físico, isso é certo. Entretanto, é-lhe uma imagem mórbida e desconfortável. A única conclusão a que chega é a de que, seja qual for a tua sorte ou privilégio, não existe proteção infinita nesse mundo. Adormece sem sonho. Acorda no final da madrugada e faz o fogo no fogão à lenha para ferver a água pro café passado e esquentar a pizza que sobrou da janta no forno. Aproveita a proteção do momento no tempo e espaço que lhe cabe em sua passagem por este plano físico. Viver é sobreviver. Madrugada amiga, chuva musical. Que venha o sol. Aleluia.
Uma boa semana para todos. Cuidem-se, vacinem-se, vivam e fiquem com Deus.