Há 40 anos, enquanto o Homem Gol balançava as redes do Hamburgo em Tóquio e deixava o planeta Tricolor, era lançada mais uma edição da Enciclopédia Mirador Internacional, "aspirando a ser uma visão da cultura humana segundo a perspectiva do povo brasileiro e dos usuários da língua portuguesa. Sonhada, planejada e realizada por brasileiros (...), cremos que nela se consubstancia, em forma expositiva clara e isenta, correta e rica, o âmbito da cultura humana e, nele, em especial o da língua portuguesa. Esta obra (...) é dedicada ao aprimoramento cultural dos usuários da língua portuguesa de todos os quadrantes da Terra". Uau syl! O editor Antônio Houaiss e a equipe da Encyclopaedia Britannica do Brasil não economizaram intenções no prefácio da Mirador de 1983, composta e impressa no país pela Companhia Melhoramentos desde 1976.
E essa maravilha estava agora em minhas mãos. Todos os seus 20 volumes, contendo 300 mil assuntos tratados em 8 mil verbetes distribuídos por suas 11.565 páginas. Assim eu pensava... Ao contar, constatei que tinha 19 volumes. Uma breve verificada e vi que o 8º faltava, ou seja, tudo o que estava contido entre Egito e Estrela. Como assim? Fui ao fornecedor e o questionei sobre.
- Deve ter sido surrupiado no caminho pelo entregador - respondeu.
- Quem é?
Deu-me nome e endereço. Resolvi ir lá. Coisas importantes a gente mesmo tem de resolver. O endereço remetia a uma rua trivial da cidade trivial onde resido.
José dos Santos era seu nome, um garoto de 18 anos - mais trivial impossível. Qual o motivo que o levara a surrupiar o 8º volume? Em breve saberia. Bati palmas. Atendeu. Estranhei e fiquei impressionado que alguém tão jovem morasse sozinho numa casa, nesses tempos em que alguns chegam aos 40 ainda residindo com os pais. A trivialidade terminara. Entrei e ofereceu-me Café do Mercado, moído na manhã daquele dia. O cheiro inebriante do café passado veio da cozinha e imantou a sala. Fez-me recordar daquele antigo comercial do Café Haiti. Estou ficando velho, mesmo.
Mirei o pequeno rapaz branco, de cabelos pretos e olhos verdes, quase um cosplay de Harry Potter, e informei:
- Vim buscar o oitavo volume da Mirador.
- Sei.
- Estás com ele?
- Sim.
- Pode, então, entregar, por favor?
- Não.
- Vendeu-o?
- Não.
- Então qual é o motivo?
- Não sei.
- Como não sabe?
- Não sei. O 8º volume, E, me provoca intenções e desejos intelectuais e literários que não supunha possuir. Não conseguirei me desfazer dele. Li o verbete sobre estoicismo e o gatilho disparou algo em meu ser.
- Então temos um problema para resolver...
- Sim.
- Sou apenas o intermediário da aquisição - menti.
- Quem é o verdadeiro dono?
- Dona. A mulher do prefeito.
- A mulher do prefeito? Interessante. Nada feito.
- O prefeito pode não gostar disso...
- E daí? Não o temo. Prefeito e bosta pra mim é tudo a mesma coisa - bravateou, perdendo o verniz de elegância. Vi que não passava de um guri de merda pretencioso, sem categoria ou classe.
- O prefeito, você deveria saber, é também o maior traficante da cidade - aumentei a mentira.
- Verdade?
- Sim - reforcei.
Pareceu surtir o efeito desejado.
- Puxa, não sabia disso...
- Pois é. E o prefeito, ao que consta, é, além do estoicismo, igualmente um adepto do pragmatismo. Logo, alguém pode apertar um gatilho e disparar algo em teu ser, com intenções e desejos nada literários e por meio de um 38.
O rapaz, entretanto, mesmo acusando o golpe, não tremeu nas bases e ainda especulou, mantendo a pose:
- O 8, percebo, é um número cabalístico para mim. Tenho 18 anos, trata-se do 8º volume de uma Mirador da década de 80 e um 38 pode ser o desfecho de tudo.
- Logo, é tanto cabalístico quanto cabal...
- Sim.
- Voldemort...
Sorriu, satisfeito com a referência literária. Sim, constatei que sua aparência era intencional.
Levantou e foi em sua biblioteca particular - outra vez me impressionou, um jovem com uma biblioteca particular em pleno 2023. Trouxe o 8º volume e outro livro, que percebi ser uma primeira edição brasileira de Harry Potter e a Pedra Filosofal. Mostrou-me, deixando transparecer levemente orgulho e vaidade.
- Interessado? - ofereceu.
- Não. É de antes de você nascer. Onde o comprou?
- Furtei.
- Também?
- Também. De uma biblioteca pública.
Ladrãozinho vil e vulgar. Furtava e vendia. Não havia nada de Santos nele. Por certo desejava levar algo para devolver aquele E, o 8º volume.
- Ladrão - comentei sem afetação.
- "A propriedade é um roubo" - citou, devolvendo o 8º volume.
Conhecia Proudhon! Impressionante. Resolvi não dar mole pra ele:
- E o Café do Mercado também, por favor, Harry.
- O Café do Mercado?
- Sim.
- Por qual motivo?
- A mulher do prefeito aprecia muito. O agrado à esposa o fará esquecer qualquer ideia de desforra em vingança por tua ousadia.
- Está bem.
Fui pra casa pensando em tomar o café e ler o tal verbete sobre estoicismo, pra ver se era fanfarra do Harry ou se há algo especial nele mesmo.
Um bom final de semana para todos. Cuidem-se, vacinem-se, vivam, leiam e fiquem com Deus.