Saiu da Casa de Cultura, atravessou rua e chegou no sebo.
- Bom dia.
- Bom dia.
- A senhora tem livros de Karl Marx?
- Sobre ele?
- Não, dele mesmo.
- O senhor estuda o autor?
- Não. Queimo.
- Queima?
- Sim. Queimo.
- Diferente...
- É que sou um fundamentalista de extrema-direita que participa de um grupo neofascista e, todo o dia de Santa Mary, nós queimamos livros de Karl Marx em sua homenagem.
- Santa Mary?
- Sim, essa da camisa. Olha.
- Ah, Marilyn Monroe... Diferente...
- Sim. Hoje é o dia do aniversário dela. E 2023 marca os 70 anos do primeiro filme que protagonizou, em Technicolor, Niagara.
- Sei... Mas ela não foi casada com o comunista aquele, o dramaturgo Arthur Miller?
- Não interessa. O que importa é que ela era branca e um símbolo do capitalismo, o ícone pop do século XX. A senhora sabia que a clássica imagem dela colorizada por Andy Warhol é de uma foto de Niagara?
- Sim, claro que sabia. Quem não sabe? Todo mundo sabe.
- Interessante... Tem os livros de Karl Marx?
- Pro senhor queimar?
- Brincadeira. É que forro a gaiola dos meus canários belgas com páginas de livros do Marx, acho que é uma boa literatura para eles. Principalmente se for os de história, tipo O 18 Brumário de Luis Bonaparte. Eles adoram história.
- Diferente... Não teme os tornar revolucionários?
- Não. As pessoas não sentem falta do que nunca tiveram e eles nasceram em cativeiro.
- Ok. Vou ver para o senhor.
- Se tiver em francês, melhor. Os canários, como disse, são belgas. Francófonos.
- Diferente...
Volta a atendente.
- Estão aqui.
- Oi, coisa boa. Meus canários belgas lhe agradecem. A felicidade é um passarinho cor de laranja.
- Também tenho esse. O senhor quer?
- Como?
- Passarinhos cor de laranja. O senhor está fazendo uma referência à Poeminho do contra, do Quintana, que tem naquela edição de capa laranja do Caderno H, não é mesmo?
- Interessante... Não, me referia à lancheria em que almoçarei na rodoviária.
- Ah, tá. O senhor é do interior?
- Sim. Da região Carbonífera. Conhece?
- Não.
- De São Jerônimo, já ouviu falar?
- Não.
- Arroio dos Ratos?
- Nunca.
- General Câmara?
- Não.
- Charqueadas?
- Charqueadas... Ah, não é aquela dos presídios?
- Sim, essa.
- O senhor é preso?
- Não, agente penitenciário. Vigio preso.
- Diferente... É verdade que todo mundo anda armado por lá?
- Sim. E todo o dia tem um tiroteio no centro da cidade. É o maior barato morar lá.
- Diferente...