"Todas as manhãs, nas últimas seis semanas, quando virava a esquina, sentia um medo mortal de que as persianas estivessem abaixadas" - escreveu Friedrich em carta para um colega, relatando o estado de saúde de seu amigo Karl, o qual temia estivesse em seus últimos dias. De fato, foi o que aconteceu no dia 14 de março de 1883, às 14h45min, há 140 anos...
"Cheguei às 14h30min, horário que ele preferia para a visita diária. As pessoas da casa estavam em prantos, diziam que parecia estar perto do fim. Ocorrera uma pequena hemorragia, seguida de um colapso repentino. Nossa brava e velha Lenchen, que cuidou dele como nem mesmo uma mãe cuidaria do próprio filho, foi para o andar de cima e, em seguida, voltou para baixo. Disse que ele havia adormecido e que eu poderia subir. Quando chegamos, ele jazia adormecido na poltrona, mas para nunca mais acordar. Não havia mais pulso nem respiração. Espirara em dois minutos, serenamente e sem dor" - informou em outra missiva.
Dois alemães que se conheceram em Londres, quarenta anos antes, ele com 24 e Karl com 26 (1) - na época da foto acima, Friedrich e Karl, com charuto. Dois grandes intelectuais que, a princípio, antipatizaram um com o outro, mas depois começou uma das maiores e mais produtivas amizades do século XIX. Uma parceria inquebrantável para o resto de suas vidas, diária, sem tempo ruim. Dá até inveja de amizades assim. Três dias mais tarde, Friedrich discursou no enterro de Karl:
"A 14 de Março, um quarto para as três da tarde, o maior pensador vivo deixou de pensar. Deixado só dois minutos apenas, ao chegar, encontramo-lo tranquilamente adormecido na sua poltrona — mas para sempre. O que o proletariado combativo europeu e americano, o que a ciência histórica perderam com a morte de este homem não se pode de modo nenhum medir. Muito em breve se fará sentir a lacuna que a morte deste homem prodigioso deixou.
"Assim como Darwin descobriu a lei do desenvolvimento da Natureza orgânica, descobriu Karl a lei do desenvolvimento da história humana: o simples fato, até aqui encoberto sob pululâncias ideológicas, de que os homens, antes do mais, têm primeiro que comer, beber, abrigar-se e vestir-se, antes de se poderem entregar à política, à ciência, à arte, à religião, etc; de que, portanto, a produção dos meios de vida materiais imediatos (e, com ela, o estádio de desenvolvimento econômico de um povo ou de um período de tempo) forma a base, a partir da qual as instituições do Estado, as visões do Direito, a arte e mesmo as representações religiosas dos homens em questão, se desenvolveram e a partir da qual, portanto, têm também que ser explicadas — e não, como até agora tem acontecido, inversamente.
"Mas isto não chega. Karl descobriu também a lei específica do movimento do modo de produção capitalista hodierno e da sociedade burguesa por ele criada. Com a descoberta da mais-valia fez-se aqui de repente luz, enquanto todas as investigações anteriores, tanto de economistas burgueses como de críticos socialistas, se tinham perdido na treva.
"Duas descobertas destas deviam ser suficientes para uma vida. Já é feliz aquele a quem é dado fazer apenas uma de tais descobertas. Mas, em todos os domínios singulares em que Karl empreendeu uma investigação — e estes domínios foram muitos e de nenhum deles ele se ocupou de um modo meramente superficial —, em todos, mesmo no da matemática, ele fez descobertas autônomas.
"Era, assim, o homem de ciência. Mas isto não era sequer metade do homem. A ciência era para Karl uma força historicamente motora, uma força revolucionária. Por mais pura alegria que ele pudesse ter com uma nova descoberta, em qualquer ciência teórica, cuja aplicação prática talvez ainda não se pudesse encarar — sentia uma alegria totalmente diferente quando se tratava de uma descoberta que de pronto intervinha revolucionariamente na indústria, no desenvolvimento histórico em geral. Seguia, assim, em pormenor o desenvolvimento das descobertas no domínio da eletricidade e, por último, ainda as de Mare Deprez.
"Pois, Karl era, antes do mais, revolucionário. Cooperar, desta ou daquela maneira, no derrubamento da sociedade capitalista e das instituições de Estado por ela criadas, cooperar na libertação do proletariado moderno, a quem ele, pela primeira vez, tinha dado a consciência da sua própria situação e das suas necessidades, a consciência das condições da sua emancipação — esta era a sua real vocação de vida. A luta era o seu elemento. E lutou com uma paixão, uma tenacidade, um êxito, como poucos. A primeira Rheinische Zeitung, em 1842, o Vorwärts! de Paris em 1844, a Brüsseler Deutsche Zeitung em 1847, a Neue Rheinische Zeitung em 1848-1849, o New-York Tribune em 1852-1861 — além disto, um conjunto de brochuras de combate, o trabalho em associações em Paris, Bruxelas e Londres, até que finalmente a grande Associação Internacional dos Trabalhadores surgiu como coroamento de tudo — verdadeiramente, isto era um resultado de que o seu autor podia estar orgulhoso, mesmo que não tivesse realizado mais nada.
"E, por isso, Karl foi o homem mais odiado e mais caluniado do seu tempo. Governos, tanto absolutos como republicanos, expulsaram-no; burgueses, tanto conservadores como democratas extremos, inventaram ao desafio difamações acerca dele. Ele punha tudo isso de lado, como teias de aranha, sem lhes prestar atenção, e só respondia se houvesse extrema necessidade. E morreu honrado, amado, chorado, por milhões de companheiros operários revolucionários, que vivem desde as minas da Sibéria, ao longo de toda a Europa e América, até à Califórnia; e posso atrever-me a dizê-lo: muitos adversários ainda poderia ter, mas não tinha um só inimigo pessoal.
O seu nome continuará a viver pelos séculos, e a sua obra também!" - encerrou Friedrich, que veio a falecer em 1895, sempre fiel ao legado do grande amigo. Até agora, quase um século e meio depois, a última frase que proferiu no discurso mantém sua validade.
(1) - Filme O Jovem Karl Marx (França/Alemanha/Bélgica, 2017), de Raoul Peck. Na cena, Friedrich Engels (interpretado pelo ator Stefan Konarske) e Karl Marx (Auguste Diehl).