Ela tá vindo, já sinto a sua presença. O seu perfume está no ar, a pele e os pelos do braço se arrepiaram, sinal de que ela está perto, quase chegando. Aguardo ansioso pela sua chegada. Quando uma crônica brota na mente do cronista, é sempre assim: ela se insinua num bom e prazeroso presságio.
Daí lembrei do Mário Quintana com a Bruna Lombardi, que não são cronistas, mas poetas. O motorista do táxi do Quintana sabia quando a Bruna Lombardi estava em Porto Alegre pela faceirice do velho. E o Quintana era um cara dado a essas coisas, já que na parede do quarto de hotel onde morava havia três fotos de mulheres: Marlene Dietrich, Cecília Meirelles e... Bruna Lombardi. Para Cecília chegou a compor o poema Solau à moda antiga: “Senhora, eu vos amo tanto/ Que até por vosso marido/ Me dá um certo quebranto…”. Não possuía fama de mulherengo e Don Juan, mas sim cultivava musas. Bruna foi a sua última.
Um cronista pode também ter musas. Luis Fernando Veríssimo claramente tem um forte pela Luiza Brunet. Escreveu, certa feita: "Só acredito naquilo que posso tocar. Não acredito, por exemplo, em Luiza Brunet." Li essa frase pela primeira vez pichada na calçada do Morro do Farol, em Torres. Já apagaram. Tudo é passageiro, assim como são fugazes as crônicas diárias, sem a pretensão de permanência que os poemas possuem. Acho que ele ainda não tocou na Brunet. Quintana tocou na Bruna. Sabem como começou essa história? Ele entrou na fila para autógrafos de um livro de poemas dela numa Feira do Livro. Quando ela o viu, quase não acreditou. Tá, ela era ultrahipermegasuper lindíssima, mas ele era o Mário Quintana e ela apenas uma jovem atriz iniciando na poesia, não havia comparação entre as aparências e tampouco entre as literaturas. Todavia, deu liga: um se encantou pelo que o outro tinha de melhor.
Eu não possuo musas, a não ser a Marilyn Monroe, mas isso é uma coisa de criança, até. Minha musa maior é a coceira da crônica mesmo, que me deixa faceiro quando inicia. Do contrário, fico emburrado. Nada literariamente pior que ausência de crônica. É um péssimo sinal, eis que a crônica precisa do mínimo para nascer, ao contrário da poesia que, como muito bem definiu Bruna Lombardi, "é a arte do mínimo". Poetas garimpam toneladas de coisas para extrair um verso curto, sintético, como se fosse um diamante. Já o cronista é aquele que brinca e se suja com toda a terra que sobra do garimpo. São naturezas literárias totalmente diferentes, quase inversas e avessas: a arte do mínimo e a arte do máximo. Por isso é difícil ver um cronista que é bom poeta ou vice-versa.
Pois então, acordei bem cedo e ela veio, como se fosse a Bruna Lombardi, a Marlene Dietrich, a Cecília Meireles ou a Luiza Brunet, a crônica. Minha linda, te amo e idolatro, não vivo sem você, pois tu és o ar que eu respiro e a água que eu bebo, melhor do que o carreteiro do Tio Adão, lá de Minas do Leão. Nunca me faltes enquanto eu respirar neste mundo de Deus e dos homens, amada crônica.
PS - Filhos são críticos sinceramente cruéis, pois a intimidade permite sinceridades extremas. Leu a crônica acima e disse: "Pai, parece que tu escreve a mesma crônica desde 2005". Retruquei, igualmente sincero: "Mas claro que sim, muito bem observado. Sou que nem o Martinho da Vila: torno diferente aquela coisa sempre igual".
- Mas a gente tem de evoluir, pai.
- Não, o que a gente não pode é involuir. Um cronista morre quando perde a capacidade de se repetir, que é justamente o que agrada ao seu leitor, que busca sempre a mesma coisa, reprocessada. É como ler o gibi do Tex. Eu leio Tex, e Tex é sempre igual, sempre a mesma história, que genialmente se modifica para continuar a mesma coisa. E é justamente por isso que leio Tex fielmente.
Ganhei, momentaneamente, a discussão. Ela disse que não falou isso, mas falou. Espero que minha neta não seja tão opiniática.