Setembro marcou os 85 anos de lançamento de Capitães da Areia (1937), sexto livro de Jorge Amado e último dos por ele chamados "romances da Bahia": O país do Carnaval (1931), Cacau (1933), Suor (1934), Jubiabá (1935) e Mar morto (1936). A obra mostra uma chaga urbana que ainda hoje é fato no Brasil: os menores que moram nas ruas, entregues à própria sorte, sem pai nem mãe e em conflito com a sociedade, vivendo do crime.
No livro, cerca de 100 crianças entre 8 e 16 anos vivem na região portuária de Salvador, dormindo num trapiche abandonado, à beira mar, sobrevivendo de furtos e roubos. Um padre, uma mãe de santo, um capoeirista e um líder operário portuário são seus únicos apoios. Capitães da areia é um livro excelente - Amado era realmente um escritor excepcional -, porém muito triste e violento. Nele, além de furtos, roubos e muitas trapaças, há miséria, morte, fome, agressão, estupro, assassinato, tortura e peste, pois Amado não d'oura a pílula, mas, sim, mostra a realidade nua e crua da infância abandonada soteropolitana dos anos 1930, tendo, inclusive, morado por um período com os menores durante a pesquisa para o romance.
Uma outra face da obra são as lutas operárias, principalmente focadas nos trabalhadores portuários e do transporte público e suas greves. Aqui o lirismo surge no texto, com as repetidas expressões "a liberdade é como o sol, o maior bem do mundo" e "os homens valentes tem uma estrela em lugar do coração". Neste ponto, o livro, por concentrar as reflexões dos deserdados e da classe trabalhadora sob o pano de fundo dos ideais comunistas, foi fortemente perseguido logo após seu lançamento. Não podemos esquecer, a propósito disso, que em 1935 tivemos a Intentona Comunista (1) e em 1937 o Estado Novo (2), logo, era uma época de fortes tensões políticas, estando o Brasil em plena Era Vargas (3), após a Revolução de 1930 (4).
Assim, há exatos 85 anos no último sábado, em 19 de novembro de 1937, vários livros de Jorge Amado foram recolhidos e queimados em praça pública em Salvador, dentre eles 800 exemplares de Capitães da areia. O livro que retrata a violência das autoridades públicas contra os menores abandonados de rua, foi igualmente vítima destas, devido ao seu claro conteúdo político e ideológico (5). Amado era um jovem de 24 anos na época, filiado ao partido comunista, chegando, em 1946, a ser eleito deputado federal pelo PCB de São Paulo.
Sobre isso, outro aspecto a mencionar é que Capitães da areia é crítico ao catolicismo oficial, usando para isso, por um lado, as dúvidas do padre que, tentando salvar os meninos, é questionado como comunista por seus superiores clericais, e, por outro lado, as convicções proletárias do líder trabalhista portuário. Quando deputado federal, inclusive, foi de Amado a proposta - aprovada - de emenda constitucional garantindo a liberdade de expressão religiosa no Brasil, tendo em vista as perseguições sofridas por cultos africanos e protestantes naquele período. Embora se declarasse materialista e ateu, Amado tinha relações com a Umbanda (6) e o Candomblé.
Uma curiosidade do livro foi a inclusão do cangaceiro Volta Seca como personagem, adaptado como menino pertencente aos capitães da areia e que, futuramente, aos 16 anos, entraria no bando de Virgulino Ferreira, o Lampião, Rei do Cangaço, seu padrinho. Lampião ainda era vivo (morreria em julho de 1938, dez meses após o lançamento do livro) e ocupava o imaginário popular dos anos 1930 como um Robin Hood do sertão. O Volta Seca real entrou para o bando aos 10 ou 11 anos e fazia inicialmente funções de serviçal e espião.
Finalizando, esclareço que não poderia deixar passar em branco essa data, a fim de mostrar o quanto o Brasíl, através das décadas, permanece com suas chagas e polarizações, um cachorro correndo em círculos atrás do próprio rabo, como a leitura de Capitães da areia, ainda hoje, demonstra. Avançamos, em parte, claro, pois já não queimamos livros em praça pública, embora ainda vejamos expressões autoritárias ativas na arena pública. Todavia, cabe perguntar: Até quando?
Notas:
(1) - Controversa tentativa de golpe de estado pelos comunistas, com suposto apoio internacional, debelada pelo governo Getúlio Vargas
(2) - "Golpe dentro do golpe" dado por Vargas, reforçando seu poder e promulgando uma nova Constituição.
(3) - Como é chamado o período de 1930 a 1945, durante o qual Getúlio Vargas ficou à frente do governo e promoveu amplas profundas reformas no Estado brasileiro, que determinariam os rumos do país pelas décadas vindouras em vários aspectos de sua vida política, econômica e social.
(4) - Foi quando, inconformados com a República do Café-com-leite, em que paulistas e mineiros se revezavam na Presidência da República, as forças políticas e militares lideradas por Getúlio Vargas tomam o poder.
(5) - Capitães da areia não é nenhum tipo de manifesto comunista, muito longe disso, eis que não cita pensadores ou conceitos marxistas em suas páginas. Entretanto, como dissemos, a reflexão dos excluídos sobre sua situação se referenda pelas lutas dos trabalhadores, sendo o comunismo e a revolução expressamente citados na obra, através do senso comum e do espontaneísmo dos personagens populares.
(6) - Umbanda, uma mescla de catolicismo, kardecismo e cultos africanos, é a única religião 100% brasileira.