João Adolfo Guerreiro
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Textos

Livro não se empresta

 

No mesmo ano em que meu pai nasceu, 1936, os funcionários do Arsenal de Guerra de General Câmara – cidade que ainda se chamava Santo Amaro até 1939 -, junto com a comunidade local, construíram o Cassino dos Operários. O mostardense Nery Mathias Velho Guerreiro, dentre tantas outras frases, sempre me dizia: “Dinheiro, carro e mulher não se emprestam, meu filho”. Eu acrescentaria “livro” à sabedoria paterna. Pois o Sérgio, meu confrade, antes da pandemia, emprestou-me justamente o livro Sem bossa não há quem possa: Cassino dos Operários, uma história (Martins Livreiro Editora, 2011), do jornalista Eduardo Rodrigues. Ele deveria saber que livro não se empresta nem pra confrade, visto ser dono de sortida biblioteca particular sobre trabalhismo, de dar inveja. Claro que nunca devolverei esse livro pra ele, assim como nunca me devolveram os que emprestei, mas a história do Cassino eu vou contar um pouco pra vocês agora, graças a sua ingênua generosidade.

 

Há 60 anos, no verão de 1962, o coronel Daniel Helfensteler Balbão, comandante do Arsenal, chamou o soldado Sérgio Kalicheski em seu gabinete e ordenou: “Serjo, fecha aquilo lá. Vai na oficina e fala para o mestre Guido arrancar o assoalho velho e botar parquê novo. Do jeito que está não dá mais”. O motivo é que durante um baile de Carnaval o assoalho teria cedido, criando um buraco. Tal incidente vexaminoso, além de ocasionar a segunda grande reforma no Cassino (a primeira foi em 1947), substituiria o amadorismo pelo profissionalismo em sua gestão, tendo como resultado a fase áurea deste.

As melhores orquestras do Brasil - e do exterior - tocaram no palco do Cassino, que virou polo musical da região e do Estado, bancada, principalmente, pelos polpudos recursos da verba social do Exército Brasileiro. A grana era tanta que chegavam a contratar duas orquestras por noite, às vezes até por desorganização e esquecimento. É, minha gente mais nova que desconhece as antigas bossas da Carbonífera, quem diria, né? O fato é que a pequena e aprazível General Câmara bombava às ganhas e em alto estilo em tempos idos. Tá tudinho nas páginas do livro de Rodrigues! Para vocês terem uma ideia, naquele tempo nem tão distante assim, o município contava com 12.830 habitantes (atualmente são cerca de 8.500), mais de 10% deles funcionários do Arsenal, que vinham de todo país. Como o França, sergipano.

 

João França de Oliveira trabalhava no Arsenal de dia e tocava saxofone no Cassino à noite. Sua fama e prestígio eram tamanhos que Rodrigues lhe dedica um capítulo exclusivo no livro, chamando-o de “o músico dos músicos”. E o adjetiva ainda mais: “Foi, sem dúvida, a mais perfeita expressão do músico em ação: tinha classe, elegância ao tocar e profundo conhecimento de sua arte (...). Empunhando o sax alto ou o clarinete, o mestre das palhetas mostrava seu talento nos grandes clubes ou apertado em modestos coretos”. Ou seja, além das atrações de nome e renome de fora, na General Câmara dos anos 1950 a 1970 brilhava também a prata, ou melhor, o ouro da casa. Ah, a propósito, não poderia deixar de mencionar a acordeonista Enar Amorim, elogiosamente citada pelo autor.

 

Além de França, outro que mereceu um capítulo especial em “Sem bossa...” foi o elegante “Belmiro, o rei da noite”. O portoalegrense Belmiro dos Santos Pereira, igualmente funcionário do Arsenal, “assumiria um papel importante na sociedade negra”. Sim, no Cassino havia bailes para brancos e para pretos, separados, conforme registra Rodrigues. No final dos anos 1940, sua “amizade com oficiais de alguma projeção no Arsenal abriu as portas do Cassino para que ele começasse a promover grandes bailes” de gala, atraindo multidões, nunca dispensando o smoking e a gravata borboleta.

 

Voltando a 1962, agora na primavera, destacamos aquele que, dentre outros, era o evento social que mais mobilizava a sociedade camarense, o grande baile da Rainha da Primavera, que acontecia sempre em setembro. Nele, com o Cassino dos Operários decorado com requinte, viam-se os melhores penteados (feitos em Porto Alegre), vestidos e ternos do ano, todos de gala, tudo muito chique e estiloso – até luvas de cetim opaco na altura dos cotovelos. No baile da corte branca, a rainha eleita foi Natalzira Santana, enquanto, na corte negra, foi Iara Padilha. Fico por aqui, ressaltando que trouxe até vocês apenas cerca de 5% do que Eduardo Rodrigues conta em seu livro. Muita coisa bem legal e interessante, que muito merece ser lida, ficou de fora.

 

Até as flores amarelas nas árvores da ciclovia de Charqueadas sabem dessa implacável verdade: não se empresta livro, apenas se dá livro. O Sérgio ainda não aprendeu isso, mas como ele é meu confrade, vou lhe dar um arreglo, isto é, vou comprar a nova edição do livro que saiu recentemente e vou “emprestar” pra ele. O que me “emprestou”, já era, é meu, por usucapião literário. Por falar nisso, vocês que gostaram desse texto ou da história que ele mui parcialmente narra, recomendo a leitura de Sem bossa não há quem possa! Procurem na internet ou nas melhores livrarias.

 

João Adolfo Guerreiro
Enviado por João Adolfo Guerreiro em 28/09/2022
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