João Adolfo Guerreiro
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Textos

Nelson Rodrigues: o cronista dos cronistas

 

Um pernambucano (nascimento) carioca (morada) oriundo de uma família de jornalistas que empobreceu. Viveu no Rio de Janeiro, trabalhou como repórter policial e foi colunista em vários jornais. Dessa vivência saiu um dos trabalhos mais personalíssimos e cultuados da dramaturgia e da literatura brasileiras.

 

Apaixonado por futebol, torcedor do Fluminense - assim como o foi Jô Soares -, escreveu antológicas crônicas sobre o futebol, indo desde o Fla-Flu até a seleção brasileira de 1958. Um mestre por sua capacidade literária, um reacionário por orientação política, um cristão conservador por sua fé e, paradoxalmente, um autointitulado anjo pornográfico pelo conteúdo erótico e amoral de seu teatro, na verdade uma visão realista da sociedade, ou seja, um olhar elucidativo por detrás do véu da hipocrisia que esconde "a vida como ela é" - não por acaso o título de um de seus maiores sucessos na arte da escrita, uma série de contos publicados em jornal. Eis o imortal e cultuado Nelson Rodrigues que, fosse vivo, faria 110 anos no dia de hoje.

 

Não sei se escrevo para os mais velhos ou se para os mais jovens, mas o fato é que, para os que desejam entrar no ambiente brasileiro dos anos 1920 aos 1960, independente da faixa etária, a obra de Rodrigues é um mapa da construção de nossa recente identidade nacional, do "complexo de vira-latas" à "pátria de chuteiras", passando pelo "óbvio ululante". Como dramaturgo, contista, romancista ou cronista, sempre foi realista e, quanto a crônica, especificamente a esportiva, que é apenas uma faceta de sua literatura, constituem-se em gênero e tema onde foi igualmente grande e, por eles, podemos chamá-lo aqui no Brasil, sem exageros, de o cronista dos cronistas, isto é, o cronista que a maioria dos cronistas nacionais respeita e reverencia. E isso que temos cronistas do porte de Rubem Braga, Luis Fernando Veríssimo e Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta) no Brasil.

 

A bem da verdade, Nelson Rodrigues foi um versátil grande escritor que, por onde se aventurou com sua máquina de escrever, o fez com mestria, sempre via uma linguagem urbana realista e acessível ao público em geral, falando de coisas (futebol, relacionamentos, política) de interesse popular, sob uma ótica pessoal arguta a desnudar a vida de suas vestes mistificadoras. Tornou-se referência por seu estilo e ousadia. Ao tratar do futebol como representação da identidade e do espírito nacional, podemos ver em sua crônica do dia 12 de julho de 1958 para a revista Manchete Esportiva, um exemplo síntese do alcance analítico de suas crônicas. É um clássico da crônica brasileira. Apreciem:

 

"Dizem que o Brasil tem analfabetos demais. E, no entanto, vejam vocês: - a vitória final, no campeonato do mundo, operou o milagre. Se analfabetos existiam, sumiram na vertigem do triunfo. A partir do momento em que o rei Gustavo, da Suécia, veio apertar as mãos dos Pelés, dos Didis, todo mundo, aqui, sofreu uma alfabetização súbita. Sujeitos que não sabiam se gato se escreve com 'x' ou não iam ler a vitória no jornal. Sucedeu essa coisa sublime: - analfabetos natos e hereditários devoravam vespertinos, matutinos e revistas e liam tudo com uma ativa, uma devoradora curiosidade, que ia do 'lance a lance' da partida até os anúncios de missa. Amigos, nunca se leu e, digo mais, nunca se releu tanto no Brasil.

 

"E a quem devemos tanto? Ao escrete, amigos, ao escrete. que, hoje, é o meu personagem da semana. múltiplo personagem. Personagem meu, do Brasil e do mundo. Graças aos 22 jogadores, que formaram a maior equipe de futebol da Terra, em todos os tempos, graças a esses jogadores, dizia eu, o Brasil descobre-se a si mesmo. Os simples, os bobos, os tapados hão de querer sufocar a vitória nos seus limites estritamente esportivos: ilusão! Os 5x2, lá fora, contra tudo e contra todos, é um maravilhoso triunfo vital, de todos nós e de cada um de nós. Do Presidente da República ao apanhador de papel, do Ministro so Supremo ao pé-rapado, todos, aqui, percebem o seguinte: é chato ser brasileiro! Já ninguém tem mais vergonha de sua condição nacional. E as moças nas ruas, as datilógrafas, as comerciárias, as colegiais andam, pelas calçadas, com um charme de Joana D'Arc. O povo já não se julga mais um vira-latas. Sim, amigos: - o brasileiro tem de si mesmo uma nova imagem; ele já se vê, na generosa totalidade de suas imensas virtudes pessoais e humanas. Vejam como tudo mudou. A vitória passará a influir em todas as nossas relações com o mundo. Eu pergunto: - que éramos nós? Uns humildes. O brasileiro fazia-me lembrar aquele personagem de Dickens que vivia batendo no peito: - 'Eu sou um humilde! eu sou o sujeito mais humilde do mundo!' Ele vivia desfraldando esse humildade e a esfregando na cara de todo mundo. E, se alguém punha em dúvida essa humildade, eis o Fulano esbravejante e querendo partir caras. Assim era o brasileiro. Servil com a namorada, com a mulher, com os credores. Mal comparando, um São Francisco de Assis, de camisola e alpercatas. Mas vem a deslumbrante vitória do escrete e o brasileiro já trata a namorada, a mulher e os credores de outra maneira; reage diante de todo mundo com um potente, um irresistível élan vital. E vou mais além: - diziam, de nós, que éramos a flor de três raças tristes. A partir do título mundial, começamos a achar que a nossa tristeza é uma piada fracassada. Afirmava-se também que éramos feios. Mentira! Ou, pelo menos, o triunfo embelezou-nos. Na pior das hipóteses, somos uns ex-buchos.

 

"E a quem devemos tanto? Ao meu personagem da semana. Ninguém, aqui, admita que fôssemos "os maiores" do futebol. Rilhando os dentes de humildade, o brasileiro já não se considerava o melhor nem em de cuspe a distância. E o escrete vem e dá um banho de bola, um show de futebol, um baile imortal, na Suécia. Como se isso não bastasse, ainda se permite o luxo de vencer de goleada a última peleja. Foi uma lavagem total. Outra característica da jornada: o brasileiro sempre se achou um cafajeste irremediável e invejava o inglês. Hoje, com nossa impecabilíssima linha disciplinar no mundial, verificamos o seguinte: - o verdadeiro lorde inglês, o único inglês é o brasileiro. Um Didi, lá fora, observou uma calma, uma polidez, um equilíbrio que fariam morrer de inveja um major Anthony Eden. Amigos, na Suécia quem levou pontapé , do pescoço para cima, fomos nós. E, ainda por cima, roubaram da gente. bifaram os nossos gols, a nossa camisa. Mas tudo inútil, porque o Brasil apresentou o maior escrete do universo, segundo os mais exigentes críticos do mundo. Por fim, a lição do meu personagem. Ele ensinou que o brasileiro é, sim, quer queiram ou não, o maior" - (Rodrigues, Nelson. O berro impresso das manchetes. Rio de Janeiro: Agir, 2007, p. 408).

 

Magistral, não é mesmo? O cronista interpretando e formando o espírito e a identidade nacionais através de sua literatura. O Brasil e o brasileiro superando o complexo de vira-latas, via o futebol, a paixão nacional da pátria de chuteiras. Era o óbvio ululante daquele momento, que o mestre identificou. Esse processo de consolidação de nossa autoestima enquanto nação, quando viramos o país do futuro, se aprofundaria nos anos seguintes, com o tri campeonato mundial no México em 1970, coroando a geração de Pelé e Zagalo e tornando o primeiro o Rei do Futebol e o Atleta do Século. Para sacar como era o Brasil antes disso, devemos ler Rodrigues, o mapa.

 

Hoje vivemos momento distinto, com a Copa do Mundo do Qatar sendo realizada em novembro, com os jogadores brasileiros atuando fora do país, o Brasil já estando consolidado como uma das maiores economias do mundo e como País do Futebol, o único pentacampeão. Nossas desigualdades internas persistem, por outro lado e, em alguns aspectos, parecemos retroceder, embora isso aconteça hoje pelo mundo, até nos Estados Unidos e Europa. Nelson Rodrigues, o cronista dos cronistas, contudo, não é uma peça de museu, mas, sim, um literato a nos informar que o mundo não é mundo porque é mundo, mas sim porque é velho, para parafrasear um ditado popular. E, assim, registrou como se forma o amor próprio de um povo.

João Adolfo Guerreiro
Enviado por João Adolfo Guerreiro em 23/08/2022
Alterado em 23/08/2022
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