Tiros no alvo, n'água e no pé
O legal da arte é que tu nunca sabes o que vai dar liga ou não, o que vai repercutir ou ser ignorado. Mais do que isso ainda: às vezes tu escreves algo que achas que irá bombar e necas, nega fogo, tiro n'água, quando não no pé. Mergulham para o ostracismo. Todavia, acontece tempos depois de um desses ser redescoberto por alguém e ecoar, tiro no alvo! Vá entender, né? Eis a magia da arte, seu imponderável e indecifrável. Cabe ao artista, como disse Keith Richards, fazer a sua parte conforme sua verdade e intuição.
"Quando me dei conta, estávamos ouvindo a nós mesmos no rádio em Minnesota, 'Sucesso da Semana', e nem sabíamos que Andrew [empresário dos Stones] tinha mostrado aquela droga [a canção Satisfaction]. De início fiquei mortificado. No que me dizia respeito, aquilo era apenas a dublagem [do riff da canção]. Dez dias na estrada e era o número um nacionalmente! O disco do verão de 1965. Então não discuto. E aprendi essa lição - algumas vezes você pode exceder no trabalho. Nem tudo está designado para o seu gosto e apenas o seu" - escreveu o guitarrista em sua autobiografia (Vida, Editora Globo, 2010, p. 207).
Richards compôs o rascunho da canção numa noite de muito sono, tanto que dormiu em cima do gravador. Pela manhã, ao ouvi-la, estava a proto Satisfaction e 40 minutos de ronco. Mostrou-a a Mick Jagger e este fez a letra na piscina de um hotel, quatro dias antes de gravá-la. Ao bolar o famosíssimo riff principal, usou a guitarra com um inovador pedal de fuzz apenas para simular o som de trompas, que era a sua ideia inicial para executar o mesmo. O empresário resolveu levar adiante a gravação (1) e o resto é história. Keith não apostava uma libra na canção que se tornou o maior sucesso de sua banda.
O mesmo acontece com algumas crônicas que escrevo aqui. Penso que vão dar uma boa repercussão e nada. Outras digito com a maior das despretensões e, para minha surpresa, caem no agrado das pessoas. A gente sabe somente do que faz, como disse Richards acima. O que as pessoas fazem com o que produzimos é com elas. Uma vez fiz uma crônica sobre cunhadas (2) para o meu site e a republiquei dez anos depois no Portal de Notícias, sem a menor expectativa sobre a mesma. É das minhas mais lidas no Recanto das Letras, mas no Portal gerou uma tremenda repercussão negativa totalmente inesperada por mim. Um tiro no alvo num lugar que, noutro, tornou-se um tiro no pé. O escritor produz, o leitor traduz.
Tiros n'água são a maioria, assim como tiros de verdade que ocorrem entre policiais e bandidos. Estatísticas mostram que pouco mais de 10% acertam o alvo. Com crônicas é a mesma coisa, de cada dez que tu escreves, uma, com sorte, atinge interesse maior do que o público específico que geralmente as lê. Dificilmente escrevo uma crônica na certeza de que ela vai bombar e isso acontece. A linda e talentosa cantora e atriz Olívia Newton-John - lembro dela agora por ter falecido ontem - disse que, ao gravar as canções para o estrondoso sucesso que foi o musical Grease (1978), tinha certeza de que a canção You're The One That I Want iria estourar nas paradas musicais, devido a contagiante linha de baixo da introdução (3). E isso realmente aconteceu.
A gente acha que sabe, mas não sabe. Logo, temos apenas de fazer e pronto. Seguir a intuição. Como na imagem acima - ela lembra um quadro na parede da casa dos meus pais, décadas atrás - que ilustra esse texto, usei-a apenas por ser a que estava olhando na TV enquanto escrevia essa crônica, assistindo um canal legal que coloca por minutos imagens fixas da natureza, somente com som ambiente. A D O R O, é um baita calmante audiovisual, deixa-me tri zen. Então usei e pronto, arte pela arte. A foto que inicialmente utilizaria é a de baixo, essa sim, tudo a ver com a crônica. E era isso. Fui.
Notas:
(1) - You Tube, vídeo canção: Satisfaction - The Rolling Stones.
(2) - You Tube, vídeo canção: You're The One That I Want - filme Grease
(3) - Souzaguerreio.com: Cunhada não é parente - por João Adolfo Guerreiro