Apenas outro dia na vida de Eva
Salsa foi uma gata brasina que apareceu aqui em casa anos atrás. Colocamos esse nome porque ela era muito miona, uma salsa chorona felina. A minha filha foi que teve a ideia. Inclusive ficamos com a Salsa para ser a gatinha dela.
A Salsa não permanecia dentro de casa, mas no pátio e era arredia, não deixava a gente pegar, aparecia somente para comer. Nisso, pegou cria, obviamente. Mais de uma vez. Os gatinhos cresciam, começavam a vir no pátio comer e nós os amansávamos e doávamos. Numa ninhada tivemos duas gatas que minha filha, ao casar e se mudar, levou junto, a Tuti e a Fruti. A primeira, brasina de olhos verdes, igual a Salsa, a segunda marrom clara de olhos azuis. Tuti foi castrada, mas Fruti, arredia como a mãe, safou-se até engravidar (posteriormente não escapou da veterinária). Pariu dois gatinhos: um parecido com ela e outro todo preto, cuja família que o adotou batizou de Tchala.
Pois bem, o Tchala cresceu e perpetuou a espécie, uma ninhada com cinco gatos pretos. Dessa ninhada veio a Eva aqui pra casa. Foi decido duas coisas sobre a Eva: 1 - não seria permitido a ela entrar no cio; 2 - só sairia para o pátio durante o dia, entre às oito e às dezessete horas, passando as noites dentro de casa. E assim foi e é. Eis a Eva, linda e saudável, filha do Tchala, neta da Fruti e bisneta da Salsa - essa desaparecida já há um bom tempo. Obviamente ignora tudo isso o que escrevi acima, pois gatos se ligam apenas no imediato (comer, beber e dormir muito), ignorando seu passado e futuro e coisas como laços familiares, algo muito caro para nossa espécie. Não sabem de onde vieram e tampouco para onde vão e o que será de seus descendentes e parentes. Legado é algo fora do horizonte felino, aliás, nem horizonte possuem.
Eva vive nesse grupo familiar humano que, para ela, são gatos maiores que lhe provém e abrigam, junto com os outros bichanos e caninos que dividem o mesmo terreno em harmonia. Logo, a "família" de Eva, ou melhor, o que possa reconhecer como algo que lembre isso, somos nós. Talvez nos perceba como sua "comunidade", algo como isso. Por aqui fica e se relaciona, de boa. Parece estar feliz e muito bem, plenamente adaptada. Ignora que nós, humanos, temos ela como um bicho de espécie diferente, ou seja, uma gata, e que para nós é um animal de estimação.
Humanos sabem de onde vem a para onde vão. Sabemos, a maioria de nós, quem são nossos país e irmãos e o que eles exatamente representam em nossa vida. Diferenciamos claramente eles das outras pessoas de nossas relações, demais parentes, amigos e vizinhos. Consanguinidade é algo muito importante para nós, em todos os aspectos de nossa existência, tanto de convivência quanto de sobrevivência e reprodução. Somos bichos sociais, culturais e políticos.
Hoje minha mãe, falecida há pouco mais de dez meses, poderá virar nome de escola infantil, em votação de proposição na Câmara de Vereadores. A iniciativa foi de uma sobrinha (minha prima) que é vereadora. A justificativa é que a mãe, pessoa pública em nossa cidade, foi professora estadual e, por quarenta e um anos, exerceu fortemente atividades culturais e assistenciais via clubes de mães, é reconhecida por isso. Só parou quando adoeceu e morreu. Outro detalhe: a escola infantil a ser nomeada fica próxima de outra já em atividade, para a qual, junto com outras moradoras do bairro, muito lutou pela construção. Certa feita quiseram construir um CTG na área verde onde a escola hoje está instalada, o que gerou um movimento de moradores contrários do qual participou ativamente.
Mamãe A D O R A V A gatos, sempre teve muitos, puxei essa paixão dela. Cresci e vivo com gatos à volta. Nossa família, claro, estará em peso à noite na Câmara, acompanhando a votação e prestigiando a homenagem. É muito importante e será muito importante para mim (filho), minha irmã (filha), cunhado (genro), esposa (nora), filha (neta) e neta (bisneta), dentre outros familiares da mãe - irmã, sobrinhas, cunhada. Já para a Eva será apenas um dia como outro qualquer.
Ficou na porta me mirando com seus intensos olhos amarelos às oito da manhã, pedindo silenciosamente para sair a fim de pegar um sol no telhado, caçar e dormir. Só irá miar para mim se, ao voltar às 17 horas, o pote de ração estiver vazio. Do contrário, vai ficar na dela, gatiando pela casa e usando a caixinha para suas necessidades, além de dormir. Para a gente, pelas décadas vindouras, o que for decidido hoje no Legislativo Municipal será um marco do legado da mãe, terá um significado enorme. Eva dificilmente chegará a duas décadas de vida e, durante esse tempo, isso não significará nada para ela. Um bichinho que porventura veja e cace hoje terá significado, assim como o buraco onde enterrará suas fezes a fim de escondê-las de uma presa ou predador.
Abri a porta da área de serviço e a Eva me olhou desconfiada, como a dizer: - Sem essa, gatão diferentão, recém saí, ainda não é hora de voltar.