João Adolfo Guerreiro
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Imagem - Emory Kristof, Nat Geo image collection

 

Titanic, 110 anos do naufrágio: quem ainda lembra?

 

Ou a pergunta a realmente ser feita é: quem ainda se importa? Sim, porque o naufrágio do Titanic é um mito e um ícone da modernidade. A gente, como bons cidadãos latino-americanos culturalmente colonizados, cresceu ao sul do Equador ouvindo, dentre outras, coisas sobre o massacre do 7º de Cavalaria de Custer pelos índios em Little Bighorn (1876), a tragédia do zepelim Hindenburg (1937), a morte de Marilyn Monroe (1962) e o naufrágio do Titanic, todas vindas do Norte. Esse tipo de coisa moldou nosso imaginário coletivo e nossa visão de mundo, uma maneira de enxergar, interpretar e julgar a humanidade e a modernidade a partir dos valores e da ideologia da cultura hegemônica. Quem ainda se lembra dessas coisas? Quem ainda se importa com elas? Quem ainda se importa com o naufrágio do Titanic, tendo menos de 35 anos?

 

Escrevo 35 anos por que o último grande acontecimento a retratar o mito do Titanic foi o filme de James Cameron, que faz em 2022 25 anos de lançamento nos EUA; logo, creio que alguém que tivesse 10 anos em 1997 tenha sido capturado pelo estrondo e estardalhaço cultural que foi esse filme em todo o Ocidente, reatualizando o mito e o ícone. A tragédia do grande transatlântico, por tudo o que a envolveu, serve para pensar sobre uma porção de coisas relativas ao nosso mundo: egoísmo, arrogância, fissura pela tecnologia, megalomania, ganância, vaidade, negligência, grandeza, solidariedade, ética, pouco caso, luta de classes, estratificação social, etc, etc, etc... Existem as piadas prontas (como o viagra e as próteses penianas das FFAA) e existem as metáforas prontas, como a do Titanic. O quanto o naufrágio do Titanic ainda é uma metáfora válida para a compreensão da realidade?

 

A próxima Sexta-feira Santa marcará os 110 anos do naufrágio: o navio colidiu com o iceberg perto da meia-noite dia 14 de abril de 1912, domingo, e afundou horas depois, no início da madrugada do dia 15 de abril, segunda-feira. Não, o Titanic não afundou numa Semana Santa. Imagina se fosse? A metáfora do Deus vingativo à moda Antigo Testamento afundando implacavelmente o "navio que nem Deus afundaria", na Páscoa? Uau syl! Mas não, em 1912 o Domingo de Ramos caiu dia 31 de março e o de Páscoa dia 7 de abril. Não escreverei sobre o Titanic na Sexta Santa por esse motivo, mas o naufrágio foi num dia comum de primavera gelada do Hemisfério Norte, no Oceano Atlântico, a 650 quilômetros dos EUA, local de destino daquela fatídica, trágica. mítica e icônica viagem inaugural.

 

O desastre ocorreu dois anos antes da Iª Guerra Mundial e seis antes da Gripe Espanhola (que, é bom lembrar, iniciou nos Estados Unidos), como se fosse o evento inicial de uma era que seria marcada pelo signo da desgraça desses tempos sombrios de ciência, racionalismo e tecnologia a superlativar a capacidade humana de se matar, assim como vemos ainda hoje na Ucrânia. Logo, racionalismo sem filosofia humanista, tão somente pragmático e destruidor da vida e da natureza. Eis a metáfora que o Titanic é da modernidade em seus estertores, fato icônico e pop com suas trágicas simbologias.

 

As guerras, como as duas mundiais da primeira metade do século XX e a da Ucrânia neste XXI, acontecem pelos mesmos motivos que ocasionaram o afundamento do Titanic: egoísmo, arrogância, fissura pela tecnologia, megalomania, ganância, vaidade, negligência, pouco caso, luta de classes, estratificação social, etc, etc, etc. A guerra é a política por outros meios, uma continuidade da política, que falha enquanto ação comunicativa habermasiana circunscrita às instituições democráticos, espaço público para tal. O Titanic afundou, basicamente, porque perderam um binóculo, aceleraram a velocidade para bater um recorde de tempo de travessia transatlântica e ignoram que havia um iceberg no meio do caminho, até porque o telégrafo estava sendo ocupado pelos ricaços a enviar mensagens aos parentes e amigos, em vez de estar ligado nas mensagens das outras embarcações. Feita a desgraça, a maioria dos ricos se salvaram sem se misturar e os pobres morreram juntos, misturados e congelados, entregues ao azar da própria sorte. Eis uma metáfora da vida social, de sua luta de classes e estratificação: pobres morrem, ricos sobrevivem mediante privilégios que o dinheiro compra. Não foi exatamente assim na pandemia que - graças a Deus - termina aqui no Brasil? (PS - Vi no telejornal que 75% dos feminicídios no Brasil em 2021 - um a cada sete horas - foram de mulheres negras e pobres.)

 

Como uma Guerra da Ucrânia acontece? Além dos motivos acima elencados, podemos ver pelos atores envolvidos: Rússia, Ucrânia, Estados Unidos, Otan, Comunidade Europeia... Digam-me: quando essa gente toda não esteve envolvida com guerra na história deste mundo nos útimos séculos - alguns deles recalcitrantemente milenares? Com invasão de países, tomadas de território? Quando? Sempre! Então, por aí já podemos ver que de esgoto só pode sair isso mesmo que vocês estão pensando. É da natureza dessas nações, as grandes guerras e os grandes massacres de povos nesse mundo têm neles seus protagonistas e, agora, estão se comendo uns aos outros, como nas grandes guerras do século XX. E pior que isso ainda pode sobrar para nós, tipo repassar os custos e a conta, como sempre, para a periferia...

 

Ainda estamos sob o signo do Titanic? "Ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais?" Quem ainda se importa com essas coisas? As metáforas possuem uma vida útil maior do que os paradigmas? A tecnologia virtual contemporânea apenas mascara nossa natureza ainda moderna? O mundo globalizado interligado e conectado apenas virou um monstro menor, melhor e mais rápido? Existe democracia e compaixão do lado de baixo e de cima do Equador? A "banalidade do mal" fruto da irreflexão ainda é possível, mesmo depois de desvendada por Hannah Arendt?

 

É Semana Santa. Oremos.

João Adolfo Guerreiro
Enviado por João Adolfo Guerreiro em 13/04/2022
Alterado em 13/04/2022
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