João Adolfo Guerreiro
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Luz (naturista) del Fuego (artístico)

 

A aDORAvel Dora viveu rodeada de água em sua ilha ensolarada, pelada e enrolada em sua enorme e inofensiva cobra jiboia. Viva água e luz do fogo da vida, da arte e da natureza, não maluca, mas beleza. Bom, da capixaba Dora Vivacqua creio que tu nunca ouviste falar, mas de Luz del Fuego, com certeza que sim. Ou não? Ah, se for esse o caso, então tu tens de ler essa crônica pra conhecer um pouco da história dessa mulher pioneira, artista e naturista que, há exatos 105 anos, nascia em Cachoeiro de Itaperim - terra do rei Roberto Carlos e da rainha Dora. E se não for, leia também, já que chegastes até aqui.

 

Em 21 de fevereiro de 1917, enquanto a Revolução Russa iniciava no Império do Czar Nicolau, vinha à luz peladona - ou alguém aí nasce de roupa? -, no Espírito Santo, o revolucionário espírito livre Dora Vivacqua, em uma família tradicional e filha de um político cheio da grana, radicado em Minas Gerais. Só que Dora não seria nada tradicional e continuaria a viver nua pelos 50 anos em que jogou luz por esse plano físico. Uma vida literalmente feita de liberdade e de verdade nuas, artística e política. "Liberal" nos costumes e "socialista" no amor, vivia pela totalidade do lema positivista parcialmente inserido na flâmula nacional: Amor, ordem e progresso - o 'amor" foi ignorado no pavilhão brasileiro. Além da bandeira principal do naturismo, defendia a emancipação feminina, a liberdade religiosa, a ecologia e a proteção dos animais. Muito mais do que um rosto bonito e um belo corpo desnudo, um cérebro pensante. Uma mulher, uma pessoa e um ser humano admirável. E incompreendida, injustiçada e perseguida, como toda gente excepcional e à frente de seu tempo o é, desde sempre, nesse mundo hipócrita de sepulcros caiados e de perversidades cometidas entre quatro paredes de quartos e de gabinetes.

 

Seus problemas, claro, iniciaram no seio familiar, justamente por sua precoce afeição por andar com os seios desnudos, mulher de mente aberta e avançada que era, uma vanguardista. Mesmo os Vivacqua sendo intelectuais e afeitos à literatura - o poeta Carlos Drummond de Andrade participava dos saraus da família -, Dora, que possuía formação universitária em Letras, fugiu aos 20 anos para o Rio de Janeiro, sendo encontrada e enviada para um colégio religioso, onde ficou até completar 21 anos e obter sua maioridade e independência. Antes, fugira com um circo e chegou a ser internada por dois meses pelos familiares num manicômio. De lá foi morar com um irmão numa das fazendas dos Vivacqua, onde teve a ideia de transformar o caseiro em Adão e ser a Eva, andando com folhas de parreira nos seios e genitália, enrolada em cobras-cipós. Era a gênese da personagem que a tornaria famosa nos anos 1940 e 50. 

 

Estabelecida no Rio de Janeiro, Dora entra na carreira artística a partir de agosto de 1944, já como Luz del Fuego, a exótica dançarina sensual - dizem que a primeira artista nacional a aparecer nua sobre um palco - que, em trajes sumários, apresentava-se envolta na famosa jiboia. Encurtando a história, basta dizer que foi exitosa e muito rentável sua carreira, apresentando-se também no exterior (América do Sul, América do Norte, Europa e até no Egito), trabalhando igualmente no teatro e no cinema e sempre atingindo grandes públicos. Em suas andanças pela Europa, conheceu a filosofia existencialista e o naturismo, o que a levou a tentar a criação do Partido Naturalista Brasileiro, em 1949. Os lemas do PNB eram "Menos roupa e mais pão! Nosso lema é ação!" e "Para a fome, temos o pão. Para a sede, a água. Para a imoralidade, a nudez!". A ideia só gorou porque seu irmão Atílio, político com mandato, consumiu com os documentos e com as 50 mil assinaturas de apoio ao PNB.

 

Dando outro salto em sua biografia, Dora, com a baita grana adquirida na carreira artística, fundou o Clube Naturalista do Brasil - o primeiro na América Latina - na Ilha do Sol, na Bahia de Guanabara, Rio de Janeiro. Escreveu o livro Verdade Nua, onde falava do naturismo e de suas outras posições políticas e sociais, obra que, por pressão conservadora, foi retirada das livrarias e teve de ser comercializada somente pelos Correios. O Clube Naturalista brasileiro não era uma gandaia de pelados libertinos, como o leitor desavisado por ser tentado a pensar. Suas normas eram rigorosas: proibição de bebidas alcoólicas, palavrões, sexo, entrada de menores, de pessoas casadas sozinhas (somente com autorização escrita do cônjuge) e, claro, de andar vestido. Atração turística internacional, a Ilha do Sol foi frequentada por grandes astros e estrelas do cinema de Hollywood, recebendo, conforme os jornais, a visitação de milhões de pessoas enquanto esteve ativa.

 

Nos anos 1960, já na casa dos quarenta anos de idade, a carreira artística de Dora, sua grande fonte de renda, entrou em declínio e a chama de Luz del Fuego se apagou dos palcos e das telas. Continuou morando na Ilha do Sol até ser assassinada, em 19 de julho de 1967, junto com seu caseiro, por dois pescadores que pretendiam roubar sua fortuna - não mais existente, naquela altura. Há 55 anos, aos 50 anos, desaparecia a precursora do naturismo brasileiro.

 

Em homenagem a Dora "Luz del Fuego" Vivacqua, hoje é o Dia do Naturismo no Brasil. A exótica personagem da sensual bailarina Luz del Fuego, por vezes, retira a atenção para a totalidade da vida e da ação da mulher e cidadã Dora Vivacqua, uma grande brasileira de todos os tempos, que deixou um legado atual e ainda vivo - recomendo que pesquisem na internet o vasto material existente em texto e vídeo sobre ela (há até um filme, proibido para menores obviamente, estrelado por Lucélia Santos, fácil de achar). Este colunista, no espírito livre e desnudo que a efeméride enseja, escreveu esta crônica como veio ao mundo, em cima do seu sofá, sem nenhum pudor ou bolinha ou tarja verde. 

 

 

 

João Adolfo Guerreiro
Enviado por João Adolfo Guerreiro em 21/02/2022
Alterado em 21/02/2022
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