Carolina e Darcy: sobre a desigualdade no Brasil
No último domingo, tivemos os 45 anos de falecimento da escritora Carolina de Jesus e, hoje, os 25 anos da morte do antropólogo Darcy Ribeiro. Duas personalidades brasileiras contemporâneas que marcaram o século XX, sobre as quais você já deve ter lido ou escutado algo e que possuíam, em comum, o gosto pela escrita acerca da temática da desigualdade social.
Enquanto Darcy, em sua atuação intelectual, política e administrativa, buscou principalmente na consolidação da educação pública uma saída para a desigualdade no Brasil, Carolina era uma personagem íntima dessa desigualdade, retratando sua vida miserável como moradora da favela paulista de Canindé em seu livro Quarto de Despejo (1960), onde redigiu, em 28 cadernos na forma de diários, no período de 15 de julho de 1955 à 1º de janeiro de 1960, suas dificuldades enquanto trabalhava como catadora de papel para sobreviver. Recentemente uma colega de serviço me pediu indicação de livros para ler e citei Quarto de Despejo, tanto pela data quanto pelo marco histórico e literário de ser um livro redigido por alguém da periferia, escrito na linguagem da periferia e retratando cruamente a realidade da periferia. Único e ímpar.
Esse ano, em 26 de outubro, comemoraremos o centenário de nascimento de Darcy Ribeiro, da mesma forma que o fizemos em janeiro para com seu amigo e parceiro político Leonel Brizola. Nessa data, farei um artigo específico sobre sua biografia e legado. Como aperitivo, e a propósito da temática dessa crônica, cito uma fala sua em entrevista ao programa Abertura, em 1979. Sempre polêmico e direto, Ribeiro, ao responder sobre o papel da ciência social e dos cientistas sociais, foi categórico ao ligá-lo à solução da desigualdade: "A ciência social é um mal necessário, uma ciência meio subdesenvolvida, mas é a única com que a gente pode contar. A responsabilidade da ciência social, num país como o Brasil, é explicar por que o nosso atraso. (...) A causa somos nós, os educados, os ricos, que fizemos um país para nós, contra o povão. Então a ciência social é para estudar isso. (...) A maior parte dos cientistas sociais brasileiros não faz nada disso, são 'cavalos de santo' de Foucault, de Lévi-Strauss, que falam pela boca deles. Não olham para o Brasil, (...) são incapazes de olhar a realidade brasileira (...) e explicar, não só, as causas do atraso em que nós estamos, mas procurar perspectivas de como romper. (...) São incapazes de ajudar nisso. (...) Há um tipo de ciência social que é tão infecunda quanto a erudição antiga, essa erudição que sabia latim, que falava todas as línguas do mundo, de gente que não sabia nada, só citava, só se lembrava de um texto ou de outro. Essa gente indignificava a inteligência, pois convertia a inteligência, que é um instrumento de compreensão e transformação do mundo, num ato de fruição. Então é uma coisa masturbatória, muito ruim".
“Carolina foi a primeira mulher negra, pobre, favelada, mãe solteira e semianalfabeta – ela não completou o primário – a publicar uma autobiografia: onze mil exemplares de sua obra foram vendidos na primeira semana. Seguiram-se duas reedições, traduções para 13 línguas e venda em mais de 40 países” – escreve, no editorial da revista Aventuras na História de fevereiro de 2015, Edgardo Martolio. Esse parágrafo sintetiza os dados principais da biografia da escritora, nascida em Sacramento (MG) em 14/03/1914, de onde, aos 17 anos, partiu numa longa caminhada até São Paulo.
Na capital paulista, trabalhou por um breve período na casa do famoso cirurgião cardiologista Euryclides Zerbini, o qual a autorizou a ler as obras de sua biblioteca durante as folgas. Anos depois, após morar na rua, já mãe de três filhos, estava residindo na favela, onde foi “despejada” junto com outras pessoas por um caminhão da prefeitura que recolheu os “mendigos” que habitavam o centro da cidade: “Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita, com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludo, almofadas de sitim. Quando estou na favela, tenho a impressão que sou objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo”. Ao ser editado, "Quarto de Despejo" manteve o estilo os erros de português da escrita de Carolina, por iniciativa do jornalista que a descobriu, Audálio Dantas.
Dantas estava na favela realizando uma matéria como repórter para a Folha da Manhã (empresa jornalística que atualmente publica a Folha de São Paulo) e testemunhou uma desavença entre Carolina e alguns rapazes que ocupavam o parquinho das crianças. “Eu vou botar o nome de vocês no meu livro” – disse aos mesmos para intimidá-los. Relata o jornalista: “Estava mostrando que tinha força. E o livro era uma grande arma”. Curioso, pediu para ver os cadernos onde Carolina escrevia seu “livro”, e percebeu o potencial e a originalidade da narrativa. “Como é horrível comer e ver o filho perguntar: Tem mais? Esta palavra ‘tem mais' fica oscilando dentro do cérebro de uma mãe que olha as panela e não tem mais”. Assim surgiu, aos 46 anos, a escritora Carolina de Jesus.
“Quarto de Despejo” fez enorme sucesso e sua autora mudou de vida, saindo da favela, onde passou a ser hostilizada pelos moradores por ter cumprido a promessa de colocar o nome das pessoas no livro. Foi morar por um tempo no bairro de classe média Alto de Santana, que resultou em “Casa de Alvenaria” (1961). Depois, comprou um sítio no distrito de Parelheiros e lá viveu até sua morte, pobre e esquecida.
Em breves palavras, eis duas pessoas sobre as quais vale a pena procurar saber mais profundamente, refletindo, a partir de suas biografias e obras, sobre a desigualdade social em nosso país no passado a fim de refletir sobre a situação atual e as perspectivas para o futuro.