Bauman, independente e estigmatizado
Já faz cinco anos que o sociólogo polonês Zygmunt Bauman faleceu, em 9 de janeiro de 2017, aos 91 anos. Foi o sociólogo pop do início do século XXI, apresentando, numa linguagem acessível ao grande público, o seu conceito de liquidez em Modernidade Líquida (2000), aos 75 anos, após se aposentar da Universidade de Leeds, na Inglaterra. O que a biografia escrita por Izabela Wagner nos apresenta, principalmente, é a vida do pensador antes disso, e digo: vale a pena a leitura, pois ela foi muito interessante.
A vida de Bauman foi marcada por uma circunstância familiar e histórica: nasceu numa família judia polonesa no início do século XX. No livro, vemos que o antissemitismo não era algo restrito à Alemanha nazista, mas sim um fenômeno europeu arraigado em vastos setores sociais de diferentes países. Bauman, que sempre postulou uma nacionalidade polonesa e não judia, enfrentou problemas já na escola por sua origem. No início da Segunda Guerra, sua família vai para a zona soviética da Polônia ocupada e dividida e, assim, escapa dos guetos e dos campos de concentração. Passam a sobreviver, precariamente, das habilidades culinárias da mãe, que trabalha nos quartéis russos.
Sendo os judeus então bem recebidos entre os soviéticos, Bauman aprende russo, torna-se membro da juventude comunista e, aos 18 anos, alista-se numa divisão polonesa do Exército Vermelho, sendo, inclusive, ferido em combate. Após a Guerra, ajuda na reconstrução da Polônia sob o domínio russo, como membro do Partido Comunista, além de completar seus estudos sociológicos na Universidade de Varsóvia e, posteriormente, nela ser professor, construindo um pensamento sociológico crítico à ortodoxia marxista. Não demora para começar a ser visto com desconfiança pelas autoridades políticas e educacionais, acusado de ser um sionista revisionista do marxismo. Em 1968, junto com outros colegas, é expulso da Polônia e vai para Israel, onde seu pai e sua irmã já residem, após a morte de sua mãe.
Por lá, dá-se conta de que o nacionalismo judeu não é realmente seu objetivo de vida, além de ficar deslocado no meio acadêmico, visto que a sociologia israelense serve ao Estado e é formatada a partir do funcionalismo estadunidense, com forte influência da obra de Talcott Parsons. Ou seja, se na Polônia comunista era um revisionista, no ensino superior de Israel era considerado marxista demais. Após três anos, aceita um convite para ser chefe de departamento na Universidade de Leeds, na Inglaterra - onde passará o restante de sua vida pessoal e profissional - e, chegando lá, se impressiona com a incipiente sociologia britânica. Cabe ressaltar que a Polônia, tanto antes quanto depois da Segunda Guerra, era um polo avançado das Ciências Sociais na Europa.
A burocracia e a rotina universitária o aborrecem, por entendê-las entraves ao livre fluir do pensamento e da escrita científica sociológica. Enquanto isso, estabelecido com a esposa Janina e as filhas, passa a levar uma vida sem sobressaltos. Nesse ponto, Wagner nos mostra em seu livro a vida familiar e os hobbies de Zygmunt. Exímio cozinheiro, é ele quem prepara as refeições da casa e lava a louça, além de produzir de forma caseira algumas das bebidas alcóolicas de sua preferência. Fumante inveterado e inseparável de seu cachimbo, adora sobremesas com café e, durante um bom tempo, foi fotógrafo semiprofissional, além de apreciador de cinema, teatro e artes em geral. Janina Bauman, sua companheira por mais de 60 anos desde o fim da guerra, era escritora, sendo seus livros sobre o Holocausto e a vida no Gueto de Varsóvia - sua família não teve a mesma sorte que a do esposo - importantes como fonte etnográfica para os estudos de Bauman sobre o tema, explícitos na obra Modernidade e Holocausto (1989), que estabeleceu um novo marco paradigmático para a interpretação do fenômeno, visto por Bauman como fruto do racionalismo da modernidade e onde, a partir da percepção da realidade cotidiana nos guetos, começou a elaborar o conceito de liquidez que, posteriormente, seria o mote de sua extensa produção dos anos finais de vida, a parcela mais famosa e influente de sua bibliografia.
Óbvio que a biografia de Wagner nos traz muito mais sobre o pensamento sociológico de Bauman anterior à Modernidade líquida, Amor líquido (2003), Vida líquida (2005), Medo Líquido (2006), Tempos líquidos (2006), 44 cartas do mundo líquido moderno (2011), dentre outros. E ainda nos fala de seu amor não correspondido por sua terra natal, onde, mesmo globalmente famoso e influente já nos anos 2000, é vítima de campanhas críticas e difamatórias por parte de setores da direita polonesa, devido seu passado comunista, mesmo sendo esse regime o que o expulsou da Polônia. Bauman foi, por ser judeu e uma pessoa de esquerda, socialista e marxista heterodoxo, estigmatizado durante toda a sua vida pelos mais díspares campos políticos com os quais não se alinhou e, cientificamente, criticou. Foi o preço que pagou por sua independência intelectual, eis que, num mundo de mentiras e falsidades, a posição da verdade e da sinceridade sempre será minoritária, mesmo que forte e respeitada.
Bauman - uma biografia, publicado pela Editora Zahar, possui 645 páginas, mas não se assustem: apenas da 19 à 498 temos a biografia propriamente dita, o restante engloba a introdução, conclusão, apêndice, notas, referências bibliográficas, agradecimentos, créditos das imagens e índice remissivo. Por tudo o que Zygmunt Bauman representa para a compreensão de nosso tempo e para o entendimento de parte do que foram as ideologias dominantes do século XX e sua expressão no cotidiano das pessoas, a leitura desse livro é interessantíssima. Recomendo.