Legalidade: 60 anos
Ontem (1) escrevemos aqui sobre as forças que fizeram o Movimento da Legalidade - realizado em defesa da posse do vice-presidente João "Jango" Goulart após a renúncia do presidente Jânio Quadros, em 1961 - ser bem sucedido: a iniciativa e coragem política do governador Leonel Brizola, a mobilização popular nas ruas de Porto Alegre e do Rio Grande do Sul, a Rede da Legalidade (emissoras de rádio), o apoio do IIIº Exército ao cumprimento da Constituição e a sublevação dos sargentos da Base Aérea de Canoas. Voltamos ao assunto, de forma mais geral.
O Movimento da Legalidade, hoje, completa 60 anos, tendo ocorrido de 25 de agosto a 7 de setembro de 1961: dia 25, com a iniciativa de Brizola em enfrentar o golpe contra a Constituição, perpetrado pelos ministros militares de Jânio Quadros; dia 7 de setembro, com a posse de Jango como presidente. Entre essas datas, todo um desenrolar de fatos políticos e militares, como já vimos, em parte, no texto de ontem. Após todos esses tensos episódios, onde o Brasil esteve muito próximo de viver uma guerra civil, o "acordo" que, afinal, deixou a partida no 1x1 (o "jogo de volta" seria em 1º de abril de 1964, com o golpe militar), foi articulado por Tancredo Neves e aprovado pelo Congresso Nacional: a emenda parlamentarista. Brizola não teve a posse com plenos poderes presidenciais de Jango e os militares golpistas tiveram que engolir Goulart como presidente.
"O fascismo é fascinante, deixa a gente ignorante fascinada É tão fácil ir adiante e esquecer que a coisa toda tá errada A história se repete, mas a força deixa a história mal contada Eu presto atenção no que eles dizem, mas eles não dizem nada" - diz a canção Toda Forma de Poder, dos gaúchos Engenheiros do Hawaii. No clip original da canção (2), o ator Paulo César Pereio faz uma participação especial. Gaúcho nascido em Alegrete, Pereio se encontrava na capital quando da eclosão da Legalidade, aderindo ao movimento. Inclusive, foi um dos autores do Hino da Legalidade (3): "Avante brasileiros de pé Unidos pela liberdade Marchemos todos juntos de pé Com a bandeira que prega a lealdade...".
Ao arrepio da Constituição de 1946, clara em definir a posse do vice-presidente em caso de renúncia do presidente, os ministros militares, marechal Odílio Denys (ministro da Guerra), o vice-almirante Sílvio Heck (ministro da Marinha) e o brigadeiro-do-ar Gabriel Grun Moss (ministro da Aeronáutica), queriam, sob a alegação de evitar o comunismo no Brasil, impedir a posse de Jango em favor do deputado federal paulista Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara dos Deputados - eis, basicamente, o golpe em curso. Brizola, naquele 25 de agosto, sobre o palanque assistindo o desfile em homenagem ao Dia do Soldado, intuiu, ao ver um oficial falar ao ouvido do general Machado Lopes - comandante do IIIº Exército - e este alterar o semblante, que algo grave acontecera. Perspicaz: Jânio Quadros renunciara. O governador, após o desfile, tomou pé da situação e da tentativa de golpe e foi à ação, entrando para a história brasileira e mundial, devido a enorme repercussão na imprensa internacional que teve a Legalidade.
Se hoje o espectro do comunismo - e também o do fascismo, diga-se - é retirado do museu da história para o debate atual como caricatura e ridículo político que, surpreendentemente, ainda estimula mentes obtusas e incautas no Brasil e nos EUA, naquele tempo, década de 1960, ele realmente estava na ordem do dia, visto, por exemplo, a Guerra Fria, a Revolução Cubana e a existência da URSS. Todavia, crer que o PTB do estancieiro Jango fosse comunista era de um abissal sofisma. O trabalhismo, o sabe quem já leu pelo menos um capítulo de algum livro sobre Pensamento Político Brasileiro, é uma ideologia que pressupõe a conciliação de classes, enquanto o comunismo, ao contrário, propõe a luta de classes. Leonel Brizola, como podemos ver no livro Vozes da Legalidade (Editora Sulina, 2011), de Juremir Machado da Silva, é didaticamente claro a esse respeito: "O trabalhismo é nacionalista, o comunismo é internacional; o comunismo é materialista, o trabalhismo se inspira na doutrina social cristã; o comunismo é a abolição da propriedade, o trabalhismo defende a propriedade dentro de um fim social; (...)" (p. 170).
Entretanto, como hoje, o que importava era a versão dos fatos como vitupério e difamação política, não os fatos. Assim, para os golpistas, Jango era comunista e ponto. Na verdade, Jango não era comunista, mas trabalhista e democrata, enquanto os golpistas eram autoritários, embora não fossem totalitários (como o foram, segundo a filósofa e cientista política Hannah Arendt, os regimes Soviético na Rússia, Nazista na Alemanha, Fascista na Itália e Militarista no Japão). O que incomodava, de fato, setores da classe média, grupos militares e, principalmente, grandes empresários, é que Goulart, quando ministro do Trabalho do segundo governo de Getúlio Vargas, favorecia os direitos trabalhistas e, supremo sacrilégio, dera 100% de aumento para o salário mínimo. Sem perdão, claro. E as fake news de antanho eram distribuídas pelos jornais conservadores, principalmente o de propriedade de Carlos Lacerda, governador do Rio de Janeiro, que conspirava abertamente contra a posse do "comunista" Jango da mesma forma que combatera o Governo Vargas e fora - dizem os historiadores - o maior motivo da renúncia de Jânio, que visava voltar nos braços do povo fortalecido contra seus adversários.
O fato de Jango estar na China - vejam como a história se repete, fazendo 1961 parecer-se tragicamente com 2021 em seus delírios de fanatismo ideológico - claro que complicava tudo, dando uma "evidência" para os militares golpistas e seus apoiadores civis. Entretanto, como já escrevi ontem, essa foi uma tática usada por Jânio visando fragilizar o vice quando de sua renúncia, inviabilizando sua posse imediata. Se sua estratégia de voltar nos braços do povo não deu em nada, a de dificultar o caminho de seu vice deu certo. Não esqueçam, a propósito, que naquela época a votação para presidente e vice era em separado, e Goulart, o vice eleito, concorreu por chapa diferente da de Jânio.
Fiquemos por aqui, eis que voltaremos ao tema da Legalidade durante essa semana e a vindoura. Finalizo deixando para vocês, como dica para se aprofundarem sobre a Legalidade, os painéis (4) sobre os 60 anos do movimento que serão realizados pela Assembleia Legislativa RS e pelo Instituto Histórico e Geográfico do RS, de 30 de agosto a 2 de setembro, às 18 horas, e transmitidos ao vivo pela TV Assembleia e You Tube.
(1) - Texto: Movimento da Legalidade: 60 anos. Jornal Portal de Notícias -
https://www.portaldenoticias.com.br/ler-coluna/1569/joao-adolfo-guerreiro-movimento-da-legalidade-60-anos.html?fbclid=IwAR1h0IJqEhYSqHbUXV0Ghe4ezefVlwztyGO77rAq5K3mMvvXHJrxvgOGa9o(2) - Vídeo: Toda forma de poder (Engenheiros do Hawaii, 1986) -
https://www.youtube.com/watch?v=LeOOXR91FFU(3) - Vídeo: Hino da Legalidade (1961) -
https://www.youtube.com/watch?v=FTYfr9ebXfg
(
4) - Vídeo: Debate 60 anos da Legalidade - Um marco na história de nossa democracia, AL/RS e IHGRGS -
https://www.youtube.com/watch?v=N4D-M7lUvW8