João Adolfo Guerreiro
Descobrindo a verdade/ sem medo de viver/ A liberdade de escolha/ é a fé que faz crescer.
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A infância é um "território"

Semana passada, quando escrevi sobre o centroavante André Catimba, o dublador Orlando "Scooby Doo" Drummond e Jornada nas Estrelas nas minhas crônicas aqui no Portal, fiquei a pensar no conforto que é voltar à infância num momento presente difícil. Para quem foi feliz nesse período, ela é um porto seguro do passado reconstruído pela memória, focando nos melhores momentos.

Na parede da sala, acima da TV, fixei três posters em P&B, todos remetem aos "meus" anos 1970 e um deles é uma reprodução da mesma imagem acima. É uma foto de divulgação do seriado As Aventuras de Rin-Tin-Tin (EUA, 1954-59) (1), que o Joãozinho adorava assistir, era superultrahipermega fã. Tenho-o em P&B porque era assim que o via na Teleotto valvulada lá de casa, só décadas depois é que eu compraria o DVD colorido da série, revendo-a de uma forma diferente e mudando um pouco a percepção desta. Da mesma forma foi quando adquiri o DVD de Ultraman (Japão, 1966/67) (2) e, para minha grande surpresa, vi que os uniformes de Hayata (Susumu Kurobe, 1939) e seus colegas eram cor-de-laranja. Tempo bom, onde o passatempo da gurizada era ficar inventando novos monstrinhos iguais aos que havia no seriado, desenhando-os nos cadernos.

Na imagem acima aparecem o pequeno cabo Rusty (Lee Aaker), o tenente Rip Masters (James Brown, 1920-1992) e o astro da série, o pastor alemão Rin-Tin-Tin (3). Aarker morreu em 1º de abril desse ano, aos 77 anos - a mesma idade de minha mãe, era poucos meses mais velho. Com certeza seu personagem e o fato de lá no quartel da Colônia da minha infância existirem cães da raça pastor alemão eram o motivo de minha gande identificação para com a série. Logo, voltar para As Aventuras de Rin-Tin-Tin é voltar para o porto seguro de várias formas, inclusive naquela onde minha mãe me presenteou com um Forte Apache do Rin-Tin-Tin, que vinha com os personagens do seriado. Isso foi um episódio exponencialmente bom e inesquecível na minha infância. Para Antoine de Saint-Exupery (1900-1944) - em 31 de julho fez 77 anos de sua morte -, autor de O Pequeno Príncipe (1943), a infância é um "território" de onde viemos.

Mais precisamente ele escreve isso no livro Piloto de guerra (1942): "Quando eu era menino... Remonto longe na minha infância. A infância, esse grande território de onde cada um veio! De onde eu sou? Sou da minha infância. Sou da minha infância como de um território..." (Companhia das Letras, 2015, p. 84). Para a tradutora dessa edição, Mônica Cristina Corrêa, "o relato se mistura às reminiscências do narrador-piloto, que entra no devaneio de suas lembranças de infância para refugiar-se da tormenta (4). Tudo aquilo que lhe fora tão caro, a que denomina 'território' da infância como quem evoca uma pertença, está sob irrefreável destruição. O que se esvai, para ele, não são meramente os bens materiais, mas as conexões que dão sentido a uma civilização". 

Nesses tempos inéditos de pandemia, a volta à infância é o retorno para um "território" não hostil, o passado, frente ao inóspito presente e o (ainda) incerto futuro. A destruição (evitável) de vidas que fizeram parte de nosso passado idílico, vitimadas pelo egoísmo economista aliado à ideologia fundamentalista negacionista - antivacina, antimáscara e antidistancimamento -, embora não tão superlativa, é análoga à vivida pelo piloto de Exupery. Ele escreve também no mesmo livro que a guerra não é uma "aventura" (5), mas sim uma "doença". A pandemia é uma doença e o egoísmo negacionista também o é. Ambas destroem a vida e certa noção positiva de civilização, à qual declararam guerra.

(1) - Vídeo: abertura de As Aventuras de Rin-Tin-Tin - https://www.youtube.com/watch?v=uJ3E2GwHaxI
(2) - Vídeo: abertura de Ultraman - https://www.youtube.com/watch?v=CiNexcEil08
(3) -  O verdadeiro Rin-Tin-Tin (1918-1932) foi um cão filhote encontrado ao fim da Primeira Guerra Mundial por um soldado estadunidense, cabo Lee Duncan, que o levou para Los Angeles após o conflito. Adestrado, em 1922 iniciou suas aparições no cinema. O pastor alemão usado no seriado é um descendente de quarta geração de Rin-Tin-Tin.
(4) - Piloto de guerra narra a visão de um piloto francês durante o início da Segunda Guerra Mundial, observando o inexorável avanço alemão e a grande destruição e êxodo interno por ele causado, ante a total falta de capacidade de reação consistente da população e do exército francês.
(5) -  "De cada três, uma missão voltou essa semana. Há então uma alta densidade do perigo de guerra. No entanto, se estivermos entre os que voltam, nada teremos a contar. Vivi outrora aventuras: a criação das linhas postais (...). Mas a guerra não é uma verdadeira aventura, é só uma imitação de aventura. A aventura se baseia na riqueza das ligações que estabelece, (...), das criações que suscita. Não basta, para transformar em aventura, o simples jogo de cara ou coroa para apostar-se a vida ou a morte. A guerra não é uma aventura. A guerra é uma doença. Como o tifo" - (SAINT-EXUPERY, Antoine. Piloto de guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 68).
João Adolfo Guerreiro
Enviado por João Adolfo Guerreiro em 02/08/2021
Alterado em 02/08/2021
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