"Flexibilização" da democracia e da ética
Recentemente a Assembleia Legislativa RS retirou da Constituição Estadual a obrigatoriedade de realização de plebiscito popular para aprovar a privatização de estatais. Tal, além de enfraquecer a democracia popular, representa mais um episódio onde políticos ignoram e contrariam seus compromissos públicos de campanha.
O atual governador, em campanha, comprometeu-se a não mudar esse dispositivo constitucional de 2002 do governador Olívio Dutra e de não privatizar Banrisul e Corsan. Após eleito, já no governo, enviou o projeto retirando a necessidade de plebiscito e já anunciou a privatização da Corsan. Profundamente lamentável. Remete, no estado, a atitude similar tomada pelo governador Antônio Britto na década de 1990. No plano nacional, ecoa a mesma atitude do atual presidente que, antes contrário à reforma da Previdência do governo Michel Temer, ao ser eleito voltou atrás e a fez. Há bem poucos anos, o nome disso era estelionato eleitoral, hoje se chama "flexibilização" política por "necessidade" econômica - um sofisma, isso. O fato é que, em campanha, os candidatos foram eleitoralmente beneficiados por terem assumido tais compromissos que, no governo, descumpriram.
Isso é parte da débâcle moral que vive a política brasileira, nesse vale tudo de inspiração maquiavélica - falo do autor, não do adjetivo a ele correspondente. Escreveu o florentino no capítulo 18 de seu famoso livro O Príncipe, em 1532: "De que modo os príncipes devem cumprir a sua palavra: Todos sabem quão louvável é um príncipe ser fiel à sua palavra e proceder com integridade e não com astúcia; contudo, a experiência mostra que só nos nossos tempos fizeram grandes coisas aqueles príncipes que tiveram em pouca conta as promessas feitas e que, com astúcia, souberam transtornar as cabeças dos homens". Maquiavel não era democrata, dava conselhos inteiramente pragmáticos a monarcas absolutistas. Entretanto, como vemos, a astúcia por ele sugerida ainda é praticada nas democracias contemporâneas.
Um dos argumentos para a "flexibilização" é de que os deputados estaduais foram eleitos democraticamente para exercer sua função e, por isso, tem o direito de alterar a Constituição. Isso é um tremendo sofisma, pois, além do governador eleito ter assumido compromissos inversos em campanha, qual candidato eleito para o Legislativo Estadual assumiu publicamente compromisso de mudar tal dispositivo durante o período eleitoral, ao pedir o voto de todos os eleitores, independentemente da posição das pessoas sobre o assunto? Será que teriam recebido a mesma votação caso propusessem tal mudança constitucional?
O projeto visa, em consonância com o fundamentalismo liberal em voga, entregar patrimônio público para a iniciativa privada, esvaziando a capacidade do Estado de investir na economia. E cabe afirmar que isso é ideologia, não ciência, eis que, quando governado por políticos de visão distinta, essas estatais, sempre lucrativas, são bem geridas. Por outro lado, quando somos governados por políticos liberais em consonância com a ideologia e interesses do grande capital, essas empresas públicas são enfraquecidas a fim de se justificar a privatização.
Embora haja um grande distância - positiva - entre o governador gaúcho e o presidente na questão da pandemia, por exemplo, não podemos esquecer que são dois políticos comprometidos com a agenda liberal e os interesses do grande capital. Tal comprometimento indica até os limites do combate a pandemia no RS, que não consegue focar em medidas de combate ao espalhamento, evitando a contaminação, mas sim em políticas públicas visando atender os doentes, comprovadamente de pouca eficácia em salvar vidas, por não haver tratamento de cura para a Covid-19 - tanto que houve colapso hospitalar no RS, por mais vagas de UTIs que tenham sido criadas. Só a vacina resolve o problema.
Essa "flexibilização da vida" é igualmente calcada no fundamentalismo liberal economicista, politicamente ligado ao grande capital, que igualmente flexibilizou a democracia e a ética no caso das privatizações aqui, por isso a cito para fazer a devida relação ideológica entre ambas e esclarecer ao leitor como tudo isso se relaciona. Obviamente, devido a gradações e distinções dentro dessa visão ideológica, o governador não é um negacionista antimáscara, antidistanciamento social e antivacina, como é o mau exemplo que vem de cima. Ainda bem, para sorte de nós gaúchos.
Assim, os que de nós estiverem vivos quando esse horror todo passar, devemos pensar sobre essas coisas. Agora, podemos refletir sobre a anunciada privatização ou não da Corsan, infelizmente sem poder votar num plebiscito e durante uma pandemia que impede a mobilização popular sobre tão importante tema, além de considerar que tipo de democracia queremos e que postura ética na relação campanha-governo esperamos de nossos políticos.
João Adolfo Guerreiro
Enviado por João Adolfo Guerreiro em 15/06/2021
Alterado em 15/06/2021