MORTES & MORTES & + MORTES

Há algo de podre na República do Brasil e não são os cadáveres que se acumulam nos noticiários da TV. Eles são a consequência da podridão, não a sua causa.

Na capital gaúcha, uma mulher é morta na noite do Dia dos Namorados por um paralelepípedo jogado contra o seu carro e quatro homens jovens - sem passagem criminal pela Justiça - da mesma família são mortos a tiros numa confusão na Vila Mário Quintana. Trágica e ironicamente, Amor & Poesia em baixa e Mortes & Mortes em alta. Dias atrás uma moça jovem, grávida, modelo e universitária foi baleada e morreu quando visitava a família numa favela carioca. É a versão 2021 do caso do menino João Pedro 2020 e do músico Evaldo Rosa 2019. Fora isso, temos ainda a contabilidade da Covid-19, ceifando vidas há mais de um ano enquanto o pessoal se aglomera em Porto Alegre e Caxias do Sul como se vivessem em Vênus ou, quem sabe, em Plutão. Nesse planeta, com certeza, é que não pode ser.

Em primeiro lugar, as autoridades devem investigar e julgar tudo isso, todas essas mortes: Polícia Civil, Judiciário e Senado Federal (CPI da Covid-19). Sem tal, fica difícil saber o que realmente ocorreu em cada caso, eis que em segurança pública e política, como disse o Millôr em Poemeu olhando a bela paisagem de São Conrado do alto da Rocinha: "Não pergunte quem atira Procure sair da mira Entre bandido e polícia Só a bala é verdadeira E a vida uma mentira" (1). Ou seja, sem palpites. Os palpiteiros são sempre tão dispensáveis quanto os negacionistas estão sendo agora - já falo deles. Além do mais, é certo que em determinadas ocorrências um dos lados está mentindo e, por vezes, até mesmo os dois. Logo, deixemos as autoridades agirem.

Em segundo lugar, é óbvio que há algo errado com essas operações contra o tráfico e a milícia nas favelas cariocas. Há de se combater a ambos, claro, mas não ao custo de vidas de cidadãos e cidadãs de bem. Ou então o entendimento é: se mora na favela, é conivente e merece morrer? Inadmissível. Não sei como, mas algo tem de ser mudado nesse combate, pois o efeito colateral é inaceitável. Creio estar escrevendo uma obviedade aqui, não é mesmo? Outra: se a polícia erra, ela ainda é preferível aos bandidos, eis que está do lado da Lei. Como disse a mãe da modelo assassinada, ela só estava denunciando por ter a certeza de que foi a polícia que atirou, pois, se fosse o tráfico ou a milícia, ficaria quieta para não morrer também. Logo, a polícia atua dentro do Estado Democrático de Direito, tanto garantindo-o quanto sendo em seus termos regulada.

Na pandemia, o festival de desserviços à saúde pública patrocinado por governantes é quase que surreal, não fosse ele, via de regra, motivado por interesses econômicos concretos. A Fiocruz e a Universidade de Washington fizeram estudos e concluíram, à luz da ciência, que no Brasil há 46% de subnotificação de óbitos por Covid-19. Logo, se registramos 490 mil mortes oficialmente, na realidade devemos estar com bem mais de 600 mil e, por conseguinte, com mais de 60 milhões de casos. Os números oficiais são pura ficção - e não científica, diga-se. Tem lugar pior, como a Índia, onde se estima que os números reais são 10x superiores aos oficiais. Epidemiologistas tem acertado previsões que salvam vidas, enquanto os palpiteiros políticos, econômicos, militares e religiosos tem cometido erros que causam mortes, como ser contra o distanciamento social e a obrigatoriedade da vacinação e a favor da desobrigação do uso de máscaras, além de terem negligenciado a compra de vacinas. E essas coisas a CPI da Covid está apurando. 

O que está podre em tudo isso, afinal? O sistema social, a estrutura econômica e a consciência moral coletiva brasileira. Pois em tudo isso acima vemos que não priorizamos, como nação, população e sociedade, a vida humana. A violência mostra o resultado da podridão no varejo, enquanto a pandemia o faz no atacado. Hoje li no jornal impresso um político dizer que "não é fácil conseguir um equilíbrio entre saúde e economia" no combate à pandemia. Claro que não é fácil, é impossível! Não há como se ter "equilíbrio" ou as malditas "flexibilizações" nessa guerra, mas sim PRIORIDADE. E a prioridade tem de ser a VIDA HUMANA. Priorizar totalmente a vida humana e minimizar os efeitos danosos sobre a economia, pois a vida das pessoas é o que mais importa nesse mundo. Até o papa, que lida com o outro mundo, afirmou, graças à Deus, que o templo do Espírito Santo é o nosso corpo e não a economia.

Não matem as pessoas! Salvem as pessoas! Que Deus nos proteja e ilumine e que a ciência nos ajude.



(1) - Originalmente publicado em coluna do Jornal do Brasil de 20/11/1987. Retirado do Diário da Nova República Vol. 3, de Millôr Fernandes, página 108 (L&PM Editores, 1988), onde foi republicado.