Vida e democracia flexibilizadas
No mesmo dia em que a Assembleia Legislativa aprovou o fim da necessidade de plebiscito para autorizar a venda da Corsan e do Banrisul, o governo estadual alterou para bandeira vermelha o Distanciamento Social Controlado, permitindo o retorno das aulas presenciais no Estado. Tudo, de alguma forma, sob a égide desse conceito que povoa o imaginário ideológico neoliberal, ou seja, o manto da "flexibilização". A palavra passa a carregar uma percepção avessa ao seu sentido original, corrompendo-se.
Flexibilizar sempre sugeriu algo positivo. Hoje, para quem vive de salário, após as reformas liberais perpetradas pelos governos Temer e Bolsonaro, sugere, concretamente, perda de direitos, de emprego e de renda. Ou a terceirização, a PEC do Congelamento da Saúde e da Educação, a reforma trabalhista e a reforma previdenciária trouxeram algum ganho ao trabalhador assalariado? Bem ao contrário. Acossada pelo desemprego estrutural tecnológico que grassa, consequência direta e inevitável da revolução digital e seus efeitos no processo produtivo, a força de trabalho humana é cada vez mais desnecessária e a flexibilização beneficia os ganhos do capital, principalmente do grande. A venda de estatais rentáveis não é uma necessidade econômica, mas sim um pressuposto ideológico liberal, ou melhor, uma opção política por um modelo, tão somente. Esvaziar o estado, tirando o seu poder de intervenção e indução econômica, adequa-se à visão de mundo liberal, ao modelo de sociedade que se flexibiliza para se adequar aos interesses do grande capital no futuro o qual esbocei no parágrafo acima. E o que tem a bandeira vermelha e as voltas às aulas a ver com isso? Tudo, pois faz parte do mesmo processo, da mesma lógica, da mesma totalidade.
Não foi nem pelas crianças e tampouco pela importância social da Educação que as aulas foram retomadas, mas sim para auxiliar a roda da economia a girar. Forçaram uma barra, depois de várias semanas de bandeira preta e após os dois meses - março e abril - mais mortais desde o início da pandemia, mesmo com a grita de epidemiologistas aconselhando contra. Não conseguem gerir nem a garantia de segunda dose de vacina para as pessoas, mas acham que irão controlar um vírus altamente transmissível no ambiente escolar, uma atividade onde a aglomeração é característica. Um grande risco num momento preocupante, com percentual de imunização incipiente, tem muita chance de dar problema. E o que indica a motivação econômica de tal decisão política é iniciar pelas séries iniciais, o que, de fato, atende melhor a "função auxiliar" da escola como "creche". Ou será que as crianças pequenas entenderão e exercerão melhor os protocolos de higiene e distanciamento do que os jovens? A roda da economia tem de girar, não importando por cima de quem ela tenha de passar.
O ideal, o que os países que estão lidando bem com a pandemia estão fazendo, é o tripé testagem-isolamento-vacina. No Brasil praticamente não se testa, por isso a gigantesca subnotificação de casos - e até de óbitos, cerca de 40% em 2020. O isolamento em grande escala não está existindo e a vacina vai do jeito que bem sabemos. O Distanciamento Social gaúcho visou conciliar o combate à pandemia com a manutenção segura de parte da atividade econômica, usando, grosso modo, as internações hospitalares como indicador. Funcionou bem ano passado, mas falhou totalmente esse ano, principalmente nos últimos meses, não prevendo e não contendo o descalabro pelo qual passamos.
O fundamentalismo economicista liberal, portanto, na mesma semana, no Rio Grande do Sul, flexibilizou a segurança da vida e a democracia. Arrisca ao voltar com aulas presenciais e tira do povo a chance de debater e optar sobre tema tão importante - a venda de estatais lucrativas -, ainda mais quando se teve um discurso em sentido contrário durante as eleições de 2018. Bolsonaro também disse em 2018 que não faria reforma da Previdência, mas a fez depois de eleito. Os interesses valem mais. Rezemos para que tudo ocorra da melhor maneira possível.
João Adolfo Guerreiro
Enviado por João Adolfo Guerreiro em 28/04/2021
Alterado em 28/04/2021