Era o certo a se fazer
Viu a entrada do rancho surgir no horizonte e esporeou o cavalo, acelerando o galope. Um tempo depois, ao cruzar a porteira, estranhou o silêncio e a ausência de fumaça na chaminé. Isso não estava certo.
Diminuiu o trote e parou. Se o silêncio mortal do qual falam os livros existe, era esse. Um silêncio de nada, um silêncio de ausência de sons que deveriam estar ali, sons de coisas, de gentes e de bichos. Certo que chegara atrasado e o pior já acontecera, possibilidade que supôs ao ler a carta enviada por seu Antônio, semanas antes. Apeou, amarrou a montaria e parou na frente da casa. Não achou necessário entrar. Deu a volta pela lateral e, na velha figueira nos fundos, viu o seu velho pai lá, pendurado. Isso não estava certo, assim como não estava certo o pai iniciar uma contenda com os vizinhos por motivo tão fútil que resultou em desfecho tão trágico. As pessoas são muito tolas. O pai já era bem velho para saber disso, mas também bem velho para esquecer. Olhou demoradamente para o corpo e, depois, em volta. Uns setecentos metros adiante, na entrada do rancho lindeiro, lá estavam os cinco, parados, olhando-o. Por certo aguardavam sua reação. Ela não aconteceria.
Não sentia nada. Dor, tristeza, revolta, raiva, desejo de vingança. Nada. Tudo inútil, agora. Nada mais adiantava, o que já era, já era. "Morreu, enterra, José Carlos" - disse-lhe o pai quando a mãe, doente, faleceu. Foi, então, fazer o certo: baixou o corpo e, com a mesma corda da forca, atou os pés e a esticou até o cavalo, amarrando-a na cela. Montou e tocou adiante. O pai não se importaria mesmo, estava morto e morto não sente mais nada, só fica duro e fede se não é sepultado. Por certo até gostaria de beijar o querido chão do seu rancho, seu orgulho e único amor em vida. Cavalgou a passo por uns três quilômetros, para o lugar onde ele sempre disse que queria ser enterrado. Pegou a pá e começou a cavar. Era o certo a se fazer. Enterrar o pai e ir embora. Era o certo a se fazer.
Cavava, com o corpo esticado ao lado. Porém, estava preparado para o que viesse. Sabe-se lá o que os cinco estariam pensando. Deixariam assim? Esperariam para ver? Ou viriam fechar a conta? Que decidissem o que lhes fosse mais interessante e prudente, era problema deles, não seu: cada um escolhe seus caminhos e destino. Estava cagando e andando pra eles. Faria o certo: enterraria o pai e iria embora.
O buraco já estava em bom tamanho, quando ouviu o galope dos cavalos. Eram eles. Isso não estava certo. Pegou o rifle de repetição e se ajeitou na sepultura paterna que, agora, por força das circunstâncias, virara trincheira. Dividiram-se: três por um lado e dois por outro. Tática correta, entretanto nenhum dos grupos vinha com o sol pelas costas a fim de lhe dificultar a visão. Sorriu: erro deles. E erraram também o cálculo. Por certo acharam que, novamente sendo cinco contra um, dariam-lhe o mesmo destino do pai, mas ele não era o seu pai e esse fator importante deixaram de levar em conta. Amadores e tolos, ignoravam e subestimavam o adversário. A qualidade dos fatores altera o produto.
Estava tranquilo, não pensava em nada. Isso não estava certo, virem ali dar cabo dele. A dupla vinha mais próxima, então começaria por ela. Mirou bem o primeiro tiro e acertou. Engatilhou, mirou e mandou o segundo ao chão. Os três que vinham pelo lado em que estava o corpo do pai desaceleraram, surpresos. Atiravam de revólver, difícil de acertar daquela distância, ainda mais montados. Amadores. Alvejou um. Os que sobraram pararam de vez e responderam ao fogo. Uma bala atingiu o corpo do pai. Depois de morto, o genitor ainda lhe guardava. Sorriu. Disparou novamente e o quarto foi ao chão. O último virou e esporeou. Não poderia deixar ele ir, isto não estava certo. Concentrou-se ao fixar o alvo que, outro erro, fugia em linha reta, facilitando a mira. Amador. Não errou. Quase nunca errou um tiro na vida. Da pontaria dependia o pão.
Saiu da cova e guardou o rifle na sela do cavalo. Tudo calmo novamente, só ele e o silêncio mortal. O dia estava muito bonito, um dia de sol bom para se morrer e ser enterrado, um dia ótimo para matar e sobreviver. Lembrou de ter lido: "O que foi, será; o que aconteceu, acontecerá. Nada há de novo debaixo do sol". Puxou o corpo despido do homem que lhe dera a vida para a cova. Era desejo dele ser enterrado da mesma forma que veio ao mundo. Antes de cobrir de terra, observou calmamente a nudez inédita do cadáver familiar, atendo-se na genitália paterna com mórbida curiosidade. Nunca vira o pinto do pai em vida, só agora, em morte. Espermatozoide vencedor na corrida da vida, de fato uma porrinha de nada, por ali passou inicialmente até se acomodar no ventre de dona Vera, onde encontrou o amado óvulo materno, primeiro amor de sua vida. Pensou mais uma vez sobre o fim do pai: "Também isso é uma triste desventura: como veio, assim terá de partir. De que lhe serve ter trabalhado em vão e ter gasto todos os dias em trevas, em muitos desgostos, enfermidades e amarguras?"
Fez uma cruz de madeira com a pá e um graveto. Rezou o Pai Nosso pela alma de seu Antônio. Montou e seguiu até os corpos. Os cavalos estavam ali. Isso não estava certo. Tirou celas e arreios dos bichos e os deixou soltos e livres. Ao chegar no último amador, constatou que ainda vivia. Agonizava, claramente nos estertores. Não poderia deixar o homem morrer assim. Isso não estava certo. Deu-lhe um tiro de misericórdia no olho direito. Era o certo a se fazer. Sempre pensava em seus tiros como "no olho", não "na mosca", pois no olho só precisava dar um, não havia escapatória e, portanto, erro. Serviço rápido, eficiente e econômico.
Não os enterrou nem rezou por eles. Algum parente, amigo ou patrão que se encarregasse disso. Não sentia ódio ou desprezo, mas tampouco obrigação para com os que mataram seu pai e tentaram o mesmo com ele. Se tivessem ficado quietos em casa, nada disso teria acontecido. Se o pai tivesse tido mais tino, nada disso igualmente teria acontecido. Entretanto, as pessoas são o que elas são, não o que elas não são.
Voltou ao rancho da família e incendiou a casa principal. Era o certo a se fazer. Observou as chamas se adonando do lar onde fora criado com extremo amor pela mãe - o único amor de sua vida - e com disciplina e zelo pelo pai. Não sentia nada, pois nada mais importava, agora. Mundo besta. Mortes estúpidas e desnecessárias, mas as pessoas escolhem o seu destino, é o direito delas: plantam e colhem; criam, matam, carneiam, assam e comem. Cada um sabe de si. Ele sabia dele.
Montou, esporeou e se foi. Era o certo a se fazer. Não havia nada mais para ele ali e fazia um lindo dia de sol, ótimo pra se estar vivo e com saúde. Respirou fundo, encheu os pulmões de ar e sorriu.
João Adolfo de Souza Guerreiro nasceu em casa, na Colônia, pela parteira Gessy Quadros, e posteriormente se mudou para a Cohab, em Charqueadas. É filho do Nery e da Ivone, irmão da Maria Emília, neto de João/Maria e de Adolfo/Emília e afilhado de Nazinha/Ademar. Marido da Rosilane, pai da Joana e "vossalo" da Beatriz. Licenciado e especializado em Sociologia, é agente penitenciário aposentado. Já tocou, como violonista, no Festival Jacuí da Canção com Paulo Rebelo (Menino Esperança) e no CD Bem Simples com Alberto André. Foi canastrão no grupo Charqueartes, em Doce Vampiro e A sétima Lua. Cronista, já escreveu regularmente para os jornais Diário de Charqueadas e A Região, para a Mostra Literária de Charqueadas e atualmente para o jornal Portal de Notícias e o site Recanto das Letras, além de participar ativamente do Clube do Livro de Charqueadas e do Sarau Literário de Charqueadas. É colaborador da Biblioteca Pública Municipal Professora Vera Maria Gauss. Reside no Centro de Charqueadas. A D O R A café passado, instrumentos musicais de corda, crônicas e livros.