O enforcado
Viu o rancho surgir no horizonte e esporeou o cavalo, acelerando o galope. Um tempo depois, ao cruzar a porteira de entrada, estranhou o silêncio e a ausência de fumaça na chaminé. Isso não estava certo.
Diminuiu o trote e parou. Se o silêncio mortal de que falam os livros existe, era esse. Um silêncio de nada, um silêncio de ausência de sons que deveriam estar ali. Devia ter chegado atrasado e o pior já acontecera. Apeou, amarrou o cavalo e parou na entrada da casa. Não achou necessário entrar. Deu a volta pela lateral e, na figueira, viu o seu pai lá, pendurado. Isso não estava certo, assim como não estava certo o pai iniciar uma contenda com os vizinhos por motivo tão fútil que resultou em desfecho tão grave. As pessoas são muito tolas. O pai já era bem velho para saber disso, mas também bem velho para esquecer disso e cometer um erro tão bobo. Olhou demoradamente para o corpo e, depois, em volta. Uns quinhentos metros adiante, na frente do rancho vizinho, lá estavam os cinco, parados, olhando-o. Por certo aguardavam sua reação. Ela não aconteceu.
Não sentia nada. Dor, tristeza, revolta, raiva, desejo de vingança. Nada. Tudo inútil, agora. Nada mais adiantava, o que já era, já era. "Morreu, enterra" - lhe disse o pai, quando a mãe, doente, faleceu. Foi lá, então, fazer o certo. Baixou o corpo e, com a mesma corda da forca, atou os pés e a esticou até o cavalo, amarrando-a na cela. Montou e tocou adiante. O pai não se importaria mesmo, estava morto e morto não sente mais nada, só fica duro e fede se não é sepultado. Por certo até gostaria de beijar o amado chão do seu rancho, seu orgulho e amor em vida. Cavalgou a passo por uns três quilômetros, para o lugar onde ele sempre disse que queria ser enterrado. Pegou a pá e começou a cavar. Era o certo a se fazer. Enterrar o pai e ir embora. Era o certo a se fazer.
Cavava, com o corpo do pai esticado ao lado. Porém, estava preparado para o que viesse. Sabe-se lá o que os cinco pensariam. Deixariam assim, esperariam para ver ou viriam aqui para fechar a conta? Que decidissem o que era mais prudente, era problema deles, não seu: cada um escolhe seus caminhos e destino. Ele faria o certo: enterraria o pai e iria embora. O buraco já estava em bom tamanho. Ouviu o galope dos cavalos. Eram eles. Isso não estava certo. Pegou o rifle de repetição e se ajeitou na sepultura paterna que, agora, por força das circunstâncias, virara trincheira. Três por um lado e dois por outro. Nenhum dos grupos vinha com o sol pelas costas a fim de lhe dificultar a visão. Sorriu: erro deles. E erraram também o cálculo. Por certo achavam que, novamente sendo cinco contra um, dariam-lhe o mesmo destino do pai, mas não era o seu pai e esse fator importante deixaram de levar em conta. A quantidade de fatores altera o produto.
Estava tranquilo, não pensava em nada. Isso não estava certo, virem ali dar cabo dele. A dupla vinha mais próxima, então começaria por ela. Mirou bem o primeiro tiro e acertou. Engatilhou, mirou e mandou o segundo ao chão. Os três que vinham pelo lado em que estava o corpo do pai aceleraram pra cima. Atiravam de revolver, difícil de acertar daquela distância. Alvejou um. Os que sobraram pararam e responderam ao fogo. Uma bala atingiu o corpo do pai. Depois de morto, o genitor ainda lhe guardava. Sorriu. Disparou novamente e o quarto foi ao chão. O último virou e esporeou. Não poderia deixar ele ir, isto não estava certo. Concentrou-se ao fixar o alvo que, outro erro, fugia em linha reta, facilitando as coisas. Não errou.
Saiu da cova e guardou o rifle na cela do cavalo. Tudo calmo novamente, só ele e o silêncio mortal. O dia estava muito bonito, um dia bom para se morrer e ser enterrado, um dia bom para matar e sobreviver. Puxou o corpo despido do homem que lhe dera a vida para o fundo e o cobriu de terra. Era desejo dele ser enterrado da mesma forma que veio ao mundo. Fez uma cruz de madeira com a pá e um graveto. Rezou o Pai Nosso pela alma do seu Antônio. Montou e seguiu até os corpos. Os cavalos estavam ali. Isso não estava certo. Tirou celas e arreios dos bichos e os deixou soltos e livres. Ao chegar no último, constatou que ainda vivia. Agonizava, claramente nos estertores. Não poderia deixar o homem morrer assim. Isso não estava certo. Deu-lhe um tiro de misericórdia na cabeça.
Não os enterrou nem rezou por eles, a natureza ou algum parente ou amigo que se encarregasse disso. Não sentia ódio, mas tampouco obrigação para com os que mataram o seu pai e tentaram o mesmo com ele. Se tivessem ficado quietos em casa, nada disso teria acontecido. Se o pai tivesse tido mais tino, nada disso igualmente teria acontecido. Entretanto, as pessoas são o que elas são, não o que elas não são. Voltou ao rancho da família e o incendiou. Era o certo a se fazer. Observou as chamas adonando-se da casa onde fora criado com amor pela mãe e com disciplina e zelo pelo pai. Não sentia nada, pois nada mais importava, agora. Mundo besta. Mortes estúpidas e desnecessárias, mas as pessoas escolhem o seu destino, é o direito delas. Plantam e colhem. Cada um sabe de si. Ele sabia dele.
Montou, esporeou e se foi. Era o certo a se fazer. Não havia nada mais para ele ali.
João Adolfo Guerreiro
Enviado por João Adolfo Guerreiro em 21/02/2021
Alterado em 22/02/2021