João Adolfo Guerreiro
Descobrindo a verdade/ sem medo de viver/ A liberdade de escolha/ é a fé que faz crescer.
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Textos
Leite Moça, 100 anos de Brasil

Eu adorava Leite Moça quando era guri pequeno lá na Colônia dos anos 1970. Meus pais faziam rancho no São Roque e traziam sempre quatro latas para casa, como essa aí de cima, calculando usar uma por semana para alguma coisa. O uso mais frequente, quando a mãe liberava, era para o café da manhã.

Eu gostava de cortar uma fatia de pão francês de 500 gramas e derramar o Leite Moça em cima, esperando ele afundar no pão. Repetia até não afundar mais e, daí, comia. Minha mãe reprimia: "Tu vais usar todo o Leite Moça só pra ti? E a tua irmã? E eu?". Era o justo, entretanto eu não concordava, claro, pois meu senso de justiça era diretamente ligado aos meus interesses alimentares egoístas. Por que não ganhar um Leite Moça só pra mim?

Então comecei a pensar e ter ideias... Como a mãe os guardava no armário, concluí que poderia furar as latas no fundo, beber tudo e depois recolocar embaixo das cheias que ela só notaria quando fosse pegá-las. Então como saberia quem foi? Poderia acusar minha irmã! Plano perfeito! E assim eu fiz. Sorrateiramente afanava uma lata e levava escondido para o quarto, fazia os dois furos com o abridor e bebia. Ah, que delícia! E que sede! Tinha de levar uma garrafa d'água junto para conseguir tomar toda uma lata. Foi a primeira e foi a segunda. Bom, agora não tinha mais como tomar as de cima. Passou uma semana, passou outra, e, na terceira, quando a mãe meteu as mãos na latinha de baixo, ouvi: - "Quem foi que comeu o Leite Moça?"

- "Eu não fui, mãe. Foi a Neneca". Ao contrário do que considerei a meu favor no plano perfeito, não colou e fui descoberto, até porque era o tinhoso da casa. Ainda bem que a mãe não era o pai e, assim, livrei-me de uma sova. Depois disso perdi a vergonha e o pudor e comecei a surrupiar na cara dura as latinhas e tomar, sendo que a mãe começou a comprar mais e esconder algumas. O pai não deu bola, nem sei se a mãe contou pra ele. Era brigadiano, bravo, não deixaria barato. Seguido me levava pro quartel.

Nunca vi Leite Moça por lá enquanto o pai foi o responsável pela cozinha - só se compravam algum exclusivamente pro tenente Nelson, sei lá. E, mesmo que visse, ali era a cozinha do quartel, não a lá de casa, e o pai não era a mãe. Mas ele era legal. Ficou um tempo responsável pelo paiol ou sala das armas, não lembro como a chamavam, e eu ia com ele pra lá. Havia um beliche e eu dormia na parte de baixo. Delirava com aqueles revolveres, fuzis, granadas, capacetes e a metralhadora .50, do tempo da guerra, que o pai me dizia que era usada contra tanques ou aviões. Uau syl, que barato! Possuía autorização paterna para brincar apenas com as balas de revólver e de fuzil e não mexer em mais nada. Cumpria rigorosamente as ordens, claro. Não era melhor que roubar o Leite Moça da mãe, mas curtia brincar com as munições como se fossem soldadinhos de dois exércitos em guerra. Muito tri.

O meu querido Leite Moça faz 100 anos de produção brasileira agora em 2021, sabiam? Pois é, o leite condensado - só bem mais tarde fui aprender o seu nome verdadeiro - foi inventado pelo americano Gail Borden em 1856 e amplamente usado durante a Guerra Civil Americana no abastecimento das tropas. Em 1887 outro americano, George Page, começou sua produção na Suíça. Por isso, inclusive, a moça do desenho é uma típica camponesa suíça. Eu não sabia disso também, mas era platonicamente apaixonado pela moça do desenho e pelo seu leite, eis que era ainda muito jovem para ter pensamentos libidinosos em relação ao sexo oposto.

Em 1905 a Nestlé se fundiu com a empresa de Page. No Brasil começou a circular em 1890, importada dos Estados Unidos. Em 1921, quando a Nestlé abriu uma fábrica na cidade de Araras, em São Paulo, adotou o nome Leite Moça para o produto, pois era assim que os brasileiros o chamavam - "o leite da moça" - devido à dificuldade em pronunciar o nome em inglês, Milkmaid. Muito utilizado pelos militares, não apenas nos Estados Unidos, mas também na Segunda Guerra Mundial, aqui no Brasil não foi diferente: quando o Brigadeiro da Aeronáutica Eduardo Gomes se candidatou à Presidência da República em 1945, suas apoiadoras, a fim de arrecadar fundos para a campanha eleitoral, misturavam chocolate ao leite condensado e criaram o famoso docinho "brigadeiro", sucesso até hoje nos quartéis, nas festinhas infantis e nos palácios, onde não há como esconder o seu uso, assim como foi comigo.

Hoje já não posso mais, por restrição alimentar, beber ou comer Leite Moça. Ah, todavia, a primeira paixão platônica e gastronômica a gente realmente não esquece jamais! Parabéns pelo teu centenário por aqui, minha querida.
João Adolfo Guerreiro
Enviado por João Adolfo Guerreiro em 03/02/2021
Alterado em 04/02/2021
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