O guitarrista
Sou o guitarrista da minha banda. Toco desde criança e sou muito bom nisso. Minha banda é minha família e minha casa é a estrada. Cada trabalho que pinta é uma grana que entra. Toco pelo prazer, pela camaradagem e pela grana, nessa ordem, tudo junto e inseparável, pois preciso das três coisas para viver de boa. A música é minha vida e a guitarra paixão e meio de ganhar o pão, como se diz.
Esse lance para hoje com a cantora é o mais recente. Lá vamos nós trabalhar, curtir e viver. Seria um compromisso como outro qualquer, não fosse por ela. Puxa vida, quantas cantoras a minha guitarra já acompanhou? Não poucas e não muitas, pois, embora já possua quilometragem no meio, ainda não sou um veterano. Mas essa Layla - que nem na canção do Clapton - tem algo, sabe? Não é só afinação, interpretação, é o carisma. Acho que é isso. Ou me interessei por ela e isso está afetando meu julgamento musical? Talvez sejam as duas coisas. Isso não importa mesmo e eu realmente não ligo. A guitarra vai soar bem, como sempre, e ponto. Isso é o que interessa. Cada canção, assim como cada cantora, é só mais uma canção, embora sejam todas especiais em cada momento.
Estamos aqui e os caras da banda sabem que podem contar com a minha guitarra, que ela não vacila e não deixa ninguém na mão. Não invade espaços, não polui o arranjo, mas também não deixa buracos e salva as canções de qualquer apuro que aconteça na hora. Sou muito bom nisso, sei o que faço e onde piso, ou melhor, onde meto a mão. E lá vai! A bateria e o baixo rosnam como se fossem cães de guarda e o peso dos meus bordões cadencia junto. Boas essas gurias que contrataram para os vocais de apoio, uivam como lobas acompanhando docemente o vento. E a Layla na frente, mandando ver, indo bem, aproveitando o momento dela. Dança. Um encanto.
Fazer a base para um bom vocalista é muito legal, é como ser o camisa 10 pifando o centroavante matador: gratifica ver teu esforço e talento sendo bem aproveitado pela pessoa lá da frente. Assim como agora que o banjo está entrando para o seu solo: a harmonia da minha guitarra é a grama molhada por onde ele desliza fácil, sem escorregar ou cair. Uau! A coisa está muito boa. Ela dá uma olhada pra trás. Sentiu que aqui tem. Não sei exatamente o que ela viu aqui atrás, mas garanto que, seja o que for, aqui tem. Confesso que a olhada me deu um pouco mais de vontade. Agora a mão direita bate firme e a mão esquerda segura firme não apenas pelo prazer, pela camaradagem e pela grana, mas também por essa olhada. Flerte? Conexão musical? Sei lá, né. De qualquer forma, isso não importa agora, pois uma coisa não tem nada a ver com a outra e a vida é um improviso feito sobre uma base desconhecida - vai-se pelo instinto. É sempre assim.
"Quando te vejo não saio do tom, mas meu desejo já se repara". "Não deixe de cruzar o seu olhar com o meu". Essa dancinha está me contagiando. Os caras da banda também estão na carga total da pilha, tá todo mundo animado. Viver vale a pena, ô coisa boa. Rola o som! Entretanto, a canção termina. Toda a canção termina, assim como toda vida, um dia. Ela olhou de novo. Bem rápido, mas olhou. Não sei se foi a deixa para um solo ou uma coda - que nem o play aquele do Led Zeppelin. Algumas partituras e harmonias são meio indecifráveis, por melhor que seja a leitura ou a percepção musical.
E ficou nisso. Grana no bolso e estrada, mesmo com o aguaceiro que faz lá fora. Não sei se ela vai lembrar de nós ou de mim um dia, nem sei se eu vou lembrar também - é bem possível que, se ela não ficar famosa, esquecerei pelo menos o seu nome e esse momento se tornará uma imagem esmaecida na memória. Todavia, se ela recordar, reconhecerá que aquele guitarrista era bom, não era dedão e deu o seu melhor naquela canção. Toquei pelo prazer, pela camaradagem, pela grana e por aqueles olhares. Segue o baile.
João Adolfo Guerreiro
Enviado por João Adolfo Guerreiro em 26/01/2021
Alterado em 26/01/2021