Alemão, o injustiçado
Hoje está chovendo e volto a falar no Alemão, o cão da foto acima, que viveu lá no meu serviço e gostava de chuva. A imagem que ilustra essa crônica também é do meu colega Guedes, como a anterior, do texto escrito no dia 1º de julho (
https://www.recantodasletras.com.br/cronicas/6993275).
O Alemão não era de dar muita conversa, ou melhor, de latir. Sempre foi quietão, na dele. Vivia solto, junto com a Pretinha, uma pequena cadela preta. Certa vez trouxeram o Apolo para lá, mas o confinaram no canil, solitário. Ele não tinha nada a ver com o deus grego homônimo, pobrezito. Era grande, todo marrom claro, e já devia carregar uns bons anos de viralatice no lombo judiado. Todavia, tinha lá o seu porte e sobrevivia bravamente. O Leni, que trabalhava lá, se afeiçoou ao Apolo e pegou por hábito soltá-lo do isolamento vez por outra.
Tudo muito bom, tudo muito bem, uma boa ação mas que deu, literalmente, M. Numa manhã, bem cedo, o Leni deu o habeas corpus para o Apolo, que foi circular pela entrada da administração. Entrou no saguão e deixou por lá sua marca e legado. Uma meia hora depois, Leni o prendeu, antes do início do expediente, sem ver a obra feita pelo seu protegido. Tão logo começou a chegar o pessoal e o barraco foi armado: "Mas que nojo, quem defecou no saguão?"
Eu também vi a coisa, enorme, um miolo sólido e um amplo entorno viscoso, parecia um ovo de avestruz na chapa, feito de coco de cachorro. A culpa recaíra sobre o Alemão. Entretanto, como dizia o Rodolfo, "quem tem amigo não morre pegão". Saí em defesa dele, dizendo que, em anos de convivência harmoniosa com os humanos daquele local, nunca ocorrera nada parecido. Como onde eu trabalho qualquer pum silencioso vira trovão e todo mundo escuta, um urubu soprou nos meus ouvidos as saídas temporárias que o Leni concedia, sem autorização superior, ao Apolo. E, claro, estava quieto para não ter de assumir a bronca pela defecada do matusalém canino.
- Tu vai vei ter de ir lá na chefia e abraçar essa, Leni. O Alemão é que não vai pro fechado por causa do bostaço do Apolo.
- Mas eu não sei se foi ele, eu não vi nada.
- Não, sem essa, tu sabe que foi ele, o Alemão tem anos de serviço e nunca fez M. Vai lá e abraça que tu soltou o cachorro e deu no que deu.
O corporativismo funcionou, pois os demais colegas sabiam do que acontecera, gostavem muito do Alemão e, como o urubu também ia acabar caguetando pro chefe, o Leni cedeu a pressão e confessou seu papel no fato prejudicial ao bom andamento do serviço. Dessa injustiça o Alemão escapou, e o Apolo, pobrezito, teve de roer mais uns meses até ser considerado apto ao retorno para o convívio social.