"Por favor, fiquem em casa"
"Temos que mostrar força. E mostrar força não é o mesmo que não admitir que nós temos medo, mostrar força é comparecer" - Jule Santos.
Jule é uma amiga que escreve num site de literatura do qual participo, o Recanto das Letras. Faz mais de uma década que nos conhecemos e interagimos virtualmente. Ela é médica de urgência no Distrito Federal - DF, no Hospital Regional Santa Maria - HRSM. Ontem vi no Jornal Nacional que o DF, assim como o Rio Grande do Sul, é um dos estados onde a pandemia vem crescendo no Brasil. Lá, na última semana, as mortes subiram 94%, índice acima somente do Paraná, com 96%. Claro que eu pensei na Jule naquele momento, assim como penso quase todo dia nos profissionais de saúde da nossa região quando vejo no Portal o noticiário local, ante esse quadro agravante em alta por aqui também, colocando todo esse pessoal numa situação limite, devido serem os linha de frente contra a Covid-19.
A Jule escreve e posta no seu Face algumas situações com as quais lida lá no HRSM. Selecionei uma delas e a trago hoje para vocês aqui no Portal. História que deve ser correspondente a centenas de milhares de outras espalhadas por esse pais que, em 27 dias, dobrou o número de casos de um para dois milhões. Vamos a ela:
2 DE MAIO, HOSPITAL REGIONAL SANTA MARIA - DF
Números são vazios. Difíceis de materializar... Mais de 6 mil mortes...
Uma delas foi a morte de dona Maria (nome fictício), morreu na UTI. Sozinha.
Não, sozinha não. Acompanhada pela equipe da saúde. Que a examinavam, diagnosticavam, aplicavam medicações, alimentavam, davam banho, quantificavam suas secreções e seus sinais vitais.
Vi dona Maria de forma rápida, ainda havia alguns leitos na UTI. Rapidamente foi para o andar. E só fui pensar nela de novo, investigar seu prontuário, quando seu marido chegou para ser internado.
Ah sim, ambos com o coronavírus.
“Ela faleceu, e ele não sabe.”
Alguém precisa contar. Respirei fundo e não vou mentir, eu quis sair correndo. Me dá dez pacientes pra intubar, mas me tira dessa enrascada, desejei... Mas não tinha saída, a não ser me preparar.
Verificar nomes, idades, ler prontuário e confirmar, sim, ela faleceu.
Me aproximei, ele não tinha a menor idéia do que o esperava, perguntei sobre a esposa, as informações que ele tinha. Contou que ela estava internada, e desde então ele não a via.
Não existem as palavras certas. Nada existe aqui, eu era um amontoado de barreiras, sem expressão, apenas uma voz alta, tentando vencer o espaço que nos separava... Não havia meias palavras.
“Seu José (nome fictício), sua esposa teve uma parada cardíaca há algumas horas, infelizmente não foi possível ressuscitá-la, ela faleceu.”
Houve uma pausa.
“Já? Tão rápido?” - Ele franziu a testa. Na verdade, ele já espereva pelo pior.
Ele não poderia vê-la. Não podia ver a família. Não podia ser abraçado por ninguém. E ali, só um monte de gente cheios de barreiras.
“O senhor quer me perguntar alguma coisa?”
Ele desviou o olhar do nada para mim, os olhos marejando.
“Não, obrigada.”
“Estavam juntos há quantos anos?”- tentei ajudá-lo a falar.
“47anos.”
Ele não queria falar. Eu não queria deixá-lo sozinho.
Bem, ele não estava sozinho, estávamos lá.
“Vou me afastar um pouco, mas estamos aqui se o senhor precisar.”
Ele balançou a cabeça, não havia mais nada que poderíamos fazer...
...
Por favor, fiquem em casa.
Texto publicado no site do jornal Portal de Notícias -
https://www.portaldenoticias.com.br/colunista/53/cronicas-artigos-joao-adolfo-guerreiro/