João Adolfo Guerreiro
Descobrindo a verdade/ sem medo de viver/ A liberdade de escolha/ é a fé que faz crescer.
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ATENÇÃO: Essa crônica menciona cenas do filme Coringa. Se você ainda não o viu nos cinemas, lê-la poderá estragar a "surpresa".

O riso doentio do Coringa e da platéia

Bom, agora que já avisei que minha crônica traz spoilers, vamos a ela.

"Chuva no telhado, vento no portão, e eu aqui, nessa solidão". Escrevo nessa terça chuvosa, sozinho em casa. Solidão e chuva que, igualmente, estão presentes no filme Coringa, em cartaz nos cinemas. Não o resenharei, mas quem desejar uma tem aqui no Portal, muito boa, na coluna Filmes & Séries. O que quero abordar é um detalhe que observei nos cinemas, ao assistir duas vezes o filme...

Em  determinado ponto, o protagonista, já completamente surtado, assassina um colega palhaço sacana, que vai a sua casa, acompanhado pelo anão que trabalha na mesma agência, visitá-lo. Primeiramente, dá uma tesourada no pescoço do homem, em seguida no olho (onde a tersoura fica cravada) e, quando esse cai, bate com sua cabeça no marco da porta até arrebentá-la. Simplesmente chocante, violência extrema. O anão assiste a tudo, horrorizado. Quando a câmera o mostra, acuado e com medo ao fundo da sala, a platéia no cinema gargalha! Fico surpreso, pois a cena é tudo, menos engraçada. Colocando-me, como espectador, no lugar do anão, estou apreensivo.

Como Coringa, em sua raiva e loucura, mantém a lucidez de canalizá-las somente para os que o prejudicaram, diz para o anão que ele pode ir embora, pois o considera um cara legal que sempre foi bom para ele. Tensão... O Coringa ali, sentado ao lado do morto com a tesoura fincada no olho, e o anão passa por eles. Ao chegar na porta, não alcança a tranca. O público no cinema gargalha mais alta e intensamente do que da primeira vez! Coringa olha para o anão e levanta. Nova tensão... Vai até a porta e a destrava. O anão sai. Alívio. Novas gargalhadas!

Esse fato eu presenciei nas duas vezes em que assisti Coringa, a primeira na capital e a segunda no litoral. Na última, confesso, mais do que rever o filme (o que vale a pena), desejava conferir a reação das pessoas numa cidade diferente. O protagonista sofre de uma doença que o faz rir quando está tenso ou nervoso, uma risada louca, doentia e sofrida, marcante durante todo o filme. Gargalha escandalosamente ante a dor e o medo. Mas e o público no cinema, do que achou graça? Qual a motivação de suas gargalhadas?

Será um sadismo simbólico, análogo ao dos romanos no coliseu assistindo os leões devorarem os cristãos? Será total falta de empatia com o outro, no caso, o anão que, objetivamente, ali representa um excluído social? Ou serão as duas coisas juntas e outras somadas? Digo que fiquei mais impressionado com tais gargalhadas do que com a risada de Coringa e com a violência filme. Como disse a personagem para uma terapeuta que o atende numa instituição social, "Sou só eu, ou o mundo lá fora está ficando mais louco?"

Ao sair do cinema, no litoral, falei com o bilheteiro sobre isso e ele me respondeu: "Vi o filme com a minha esposa e também reparei nisso. Para rir, naquela cena, só se fosse de nervoso". Coringa aborda justamente a frieza e a violência da sociedade para com os seus "invisíveis", frieza proveniente tanto das classes baixas quanto das elites. Percebemos bastante essa insensibilidade nas redes sociais, onde a violência é, muitas vezes, relativizada, dependendo da vitima. Isso, mais do que a espetacularização da mesma, remete para o que Durkheim chamaria de "anomia social", um desvio mórbido a fragilizar a "solidariedade social", e Arendt de "banalidade do mal".

Assim, a risada louca e doentia do Coringa foi menos preocupante do que as gargalhadas do público, que remetem para uma possível realidade de humanos inumanos, eis que desprovidos de empatia e discernimento, expectadores anestesiados a apreciar a barbárie como se fosse uma comédia. Tragicômico.

"Chove lá fora e aqui..."
João Adolfo Guerreiro
Enviado por João Adolfo Guerreiro em 29/10/2019
Alterado em 29/10/2019
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