Primavera sem flores
Ontem às quatro da matina, a primavera chegou. Ah, estação querida, a que mais gosto e que chega em setembro, meu mês preferido, justamente por isso. Eu estava acordado nesse horário. Vocês também? Estava frio, não é mesmo? E um frio, acentue-se, nada primaveril, eis que setembro é mês em que as temperaturas já estão mais elevadas. Mas menomale, "é primavera em meu coração", como disse o poeta Henricabílio.
Por falar em poeta português, lembro do Fernando Pessoa, meio sorumbático, sobre a primavera e a vida: "Quando vier a primavera, / Se eu já estiver morto, / As flores florirão da mesma maneira / E as árvores não serão menos verdes que na primavera passada. / A realidade não precisa de mim". Verdade, a primavera não precisa da gente. Existir é a dádiva essencial; viver é possibilidade e opção. E estarmos aqui, num dia de sol, com saúde, apenas existindo, é tão bom, não é mesmo? Pensando nisso, saí para caminhar, por essa linda manhã de sol e de céu azul que fez hoje. Viver é um privilégio.
A propósito, enquanto caminhava, Pessoa novamente me vinha aos pensamentos: " O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, / Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia / Por que o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia". Na minha aldeia corre o Jacuí, que, para mim, é o mais belo, por que é o rio que por aqui corre, mas o vento me tirou a ideia de ir até suas margens, pois suas margens, por aqui, não são convidativas, ainda mais no frio. A não ser no trapiche, quando o sol se põe, como agora, neste momento em que escrevo.
Enquanto caminhava pela minha rua, contudo, não enxergava flores. Onde estão as flores? Caminhei de alto à baixo e muito pouco vi. As poucas que enxerguei eram amarelas, rosas, vermelhas e brancas, Mas poucas, muito poucas. Na minha casa mesmo, nada, agora que o ipê roxo agoniza. Chateia-me ver o morinbundo ali, outrora inponente, agora com a pouca vida colorida que lhe resta, quase imperceptível. Fui até o final da rua, que desemboca numa praça. Sem flor lá, flor alguma. Apenas árvores, algumas frondosas, ao centro e outras secas, mais ao extremo. Sentei no banco sob o sol, para aquecer-me e amenizar o efeito do vento. As árvores secas fizeram aquela frase do Caderno H de Mário Quintana ecoar em meu cérebro: "As árvores podadas parecem mãos de enterrados vivos". Estas na praça, secas, pareceriam mãos de mortos-vivos? Um rua sem flores é uma rua de mortos-vivos?
Minha rua é uma rua antiga e, como toda a rua antiga, morada de gente velha, principalmente. Nós não plantamos flores por isso, pelo avançar da idade, que nos resseca o espírito? Só os jovens que, como na canção do Scott Mckenzie, são "gentle people with flowers in their hair"? A primavera não veio ou nós que a matamos em nossos corações? Ou as duas coisas, cada uma ou ambas, nesses dias sombrios de ódios, desrespeito e violência? Mas, todavia, ainda insisto em declamar Henricabílio: "É primavera em meu coração". Logo, contento-me com as flores que existem na minha rua, pois elas são as flores que existem e vivem na minha rua, pois flor é mais que existir, flor é viver. E a vida é o que ela é e não o que ela não é, eis que o certo nunca será errado e o errado nunca será o certo, como uma vez me disse o Balaca e eu nunca mais esuqeci.
Só o amor dá cor pra vida e, cor, além de rimar com, é com flor. "As flores do jardim de nossa casa", como cantou o Roberto Carlos. E viver é sobreviver, correndo riscos calculados, pois a vida é o tempo que passa. O tempo, ah, o tempo e o vento deles mesmos e também de Érico veríssimo, nessa tarde de sol e céu azul charqueadense. ´'É primavera, te amo, trago uma rosa para te dar". Vou seguir o conselho do Tim Maia, pois é primavera em meu coração e uma primavera sem cor não tima com amor.
Só o amor dá cor pra vida e é primavera em meu coração. Vou no trapiche enquanto há sol nesse 23 de setembro de 2019, entrada de primavera, um dia lindo para existir viver e estar com saúde.
João Adolfo Guerreiro
Enviado por João Adolfo Guerreiro em 23/09/2019
Alterado em 23/09/2019