João Adolfo Guerreiro
Descobrindo a verdade/ sem medo de viver/ A liberdade de escolha/ é a fé que faz crescer.
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Textos
A Livraria-Que-Nem-Sempre-Abria

Era uma livraria diferente, dessas que mexem com a gente. Anunciava hora certa para abrir, num cartaz exposto à porta, embora quase sempre abrisse no horário errado, nunca adiantado, sempre atrasado. E só abria à tarde, pela manhã, sem expediente.

Todavia, era uma livraria interessante a Livraria-Que-Nem-Sempre-Abria, quando abria, sempre no horário errado e atrasado. Continha bons livros nas prateleiras. Certa feita adquiri um da mais nova das irmãs Brontë, Anne, da qual, aliás, no dia hoje, completam-se 170 anos de seu falecimento. O título era A Moradora de Wildfell Hall, artigo incerto de encontrar mesmo em grandes livrarias que abrem todos os dias no horário certo.


Ah, a propósito: nem todo dia abria a Livraria-Que-Nem-Sempre-Abria. Nas segundas-feiras a espera era, frustantemente, quimera e ilusão, eis que a proprietária simplesmente não aparecia e não dava satisfação. Entretanto, quando abria, muito boa era a recepção e, o atendimento, atinado: a dona entendia do riscado, escrito e publicado. Da vida, das dores e amores dos diversos autores era versada; de cada obra conhecia os meandros e as dobras; falava de cada livro com conhecimento preciso; sua conversa nunca era tola, pois, de literatura, era professora. E firmava palavra: as encomendas recebidas, sempre entregava, nunca falhava.


Desconfiava eu que o descompromisso com dia e horário era puro charme. Seduzir é uma arte que exige mestria, tanto no amor (como cantou Oswaldo Montenegro em Léo e Bia) como nas demais 
cose della vita
 (essa cantou o Eros Ramazzotti). Se ficarmos muito disponíveis, o outro se entoja, enjoa; se muito ausentes, outro cativará; se estivermos ali, mas nem sempre, despertaremos interesse. Assim, A Livraria-Que-Nem-Sempre-Abria abria e, quando abria, sempre na hora errada, ia. Até parecia, também, que questão não fazia de, dos seus livros, se desfazer. Por isso a proprietária não facilitava as coisas, tal qual um dono de gatinhos que somente quer doar ou vender os felinos da ninhada às pessoas que se mostrarem por demais interessadas, sintoma de cuidado certo. “Quando a gente ama é claro que a gente cuida”, compôs Peninha e cantou Caetano. Seu amor pela literatura era maior que a necessidade de cifrão e, sendo assim, livro não era coisa que se vendesse para qualquer um. Não podemos nos apegar e tampouco sermos indiferentes.

Levei vários barrancos na Livraria-Que-Nem-Sempre-Abria. A regra informal das segundas-feiras aprendi na carne, especificamente na das nádegas, amassadas em esperas intermináveis, sentado. Quanto ao horário, tinha de relativizar lusitanamente minha pontualidade germânica. Todavia, quando abria, lá estava eu, já negro e amarelo de muito café preto com quindim, à moda Mário Quintana, de tanto aguardar na cafeteria que ficava em frente da Livraria-Que-Nem-Sempre-Abria, rezando para todos os santos, de São Francisco de Paula a São Jerônimo, para que ela abrisse. E funcionava! “Andar com fé eu vou, pois a fé não costuma falhar”, não é mesmo, Gilberto Gil?

Por falar nisso, chegou a dona, salve! São 15 horas e 32 minutos. Até que enfim eu vou poder comprar um livro ilustrado do Harry Potter que há muito namoro. Assim encerro essa crônica, feita em tempo passado, no presente. Aliás, a crônica literária, gênero jornalístico, faz 220 anos em 2019, tendo iniciado num jornal parisiense em 1799 (não pude deixar passar em branco essa informação). Essa crônica foi feita na cafeteria, para passar o tempo nessa terça-feira de chuva, esperando abrir a Livraria-Que-Nem-Sempre-Abria, naquela rua. Parece conto de fadas! E, de certa maneira, é mesmo. A magia da existência está no encantamento que percebemos quando não rígidos em demasia. O mundo é muito mais do que ele é ou aparenta no dia a dia.


Texto publicado no site Portal de Notícias em 28/05/2019https://www.portaldenoticias.com.br/ler-coluna/921/a-livraria-que-nem-sempre-abria.html?fbclid=IwAR20V-4si8ZddTu34uQ2kd7CMwAJbZG5myDjiUk07JBvvorqr0_gdZS5S9M
 
João Adolfo Guerreiro
Enviado por João Adolfo Guerreiro em 30/05/2019
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