Amizade, café preto e pastel
Fui assistir esse ano ao filme Minha Fama de Mau, cinebiografia do Erasmo Carlos baseada no livro homônimo, a autobiografia do Tremendão (muito bom esse livro, recomendo a leitura). Uma das cenas que me marcou foi quando Erasmo estava brigado com Roberto Carlos e recebeu um telefonema deste, pedindo que fosse a sua casa. Lá, ouviu o Rei mostrar-lhe, ao piano, uma nova composição: “Você meu amigo de fé meu irmão camarada, amigo de tantos caminhos, de tantas jornadas...”
“Amigo é coisa pra se guardar, do lado esquerdo do peito, dentro do coração” – cantou também Milton Nascimento. Amizades masculinas, quando sinceras, são raridade que valem diamante. É um tipo de relacionamento que dura a vida inteira, como é o caso de Roberto & Erasmo, a grande amizade da música brasileira. Hoje, um grande amigo, meu “irmão mais velho”, como ele mesmo dizia, estaria completando 70 anos, se vivo fosse. Faleceu em maio de 2012, de câncer no pulmão. Morte terrível essa. Quando mais forte é a pessoa, mais ela resiste e sofre. Eu segurava a mão dele no momento em que seu coração parou de bater. Dá pra ouvir isso, é algo emocionalmente muito intenso. Mas não quero falar de seu óbito, claro, pois hoje seria seu aniversário.
Éramos amigos e companheiros de jornada. Eu aprendi a gostar de café preto com ele. Até meus 21 anos eu era apenas do café com leite e do pão com ovo frito. Ainda sou, inclusive, mas não só. A gente ia pra Porto Alegre de ônibus, passava naquela lancheria que fica embaixo da escadaria da estação rodoviária e ele pedia café preto e um pastel, sempre. E, como eu era “durango total” à época, ele pagava um lanche pra mim. E aí fui me acostumando. Ia na sua casa e sempre havia café preto na cozinha. Tomávamos, eu, ele e a sua esposa, conversando sobre política e religião, na maioria das vezes, enquanto ouvíamos Taiguara. Daí fiquei partidário do pretinho, viciado no seu aroma ao ser passado, na sensação boa que proporciona. No meu caso, descobri que era tiro e queda se estava com dor de cabeça, é tirar com a mão, como se diz. Nunca mais tomei “Doril”. Assim, tomar café preto sempre faz eu pensar nele, foi uma das muitas coisas boas que ele trouxe para minha vida.
Foi uma pessoa importante na comunidade, inclusive virou nome de uma entidade na vila onde residiu. Entretanto, hoje eu penso mais é no amigo, não no líder social. Acordei pela manhã, claro, pensando nele. Fui na lancheria da (ex) rodoviária de Charqueadas comprar a Zero Hora de sexta para ler a coluna do Eduardo Bueno. O que ele acharia dos textos do Peninha? Sempre emitia opiniões claras e racionais sobre as coisas, nem sempre concordando comigo, muitas vezes até criticando meus pontos de vista e preferências. Possuía uma inteligência poderosa e, embora não tivesse curso superior, lia muito e bem. E ainda me pego pensando, em determinadas situações, o que ele me diria ou pensaria a respeito de algo.
Assim, falo que não sinto saudade e tampouco sua falta, por mais paradoxal que isso possa parecer. Aprendi a essa altura de minha vida que tudo aquilo que a gente viveu em plenitude, no momento devido, nos deixa apenas boas lembranças; do contrário, ficamos cultivando remorsos e mágoas. A nossa amizade cumpriu seu ciclo pleno, não deixando aresta ou lacuna. A gente desejaria ainda conviver com a pessoa no plano físico, é claro, mas sabe que a existência terrena é uma passagem e que a vida não acaba sob o solo desse planeta. E, como a pessoa não morre em nosso coração e tampouco em nossa mente, sabemos que a nossa relação apenas mudou de estado, não de qualidade. Por isso a falta e a saudade inexistem, devido essa compreensão.
De tal forma que hoje posso te dizer, meu amigo, meu irmão, que, ao ir na lancheria, propositalmente tomei um café preto e comi um pastel a fim de recordar de ti naqueles tempos em que eras o Barbudo da Boina. Poderia ser na tua fase careca de terno, também, mas esse outro período foi muito legal, não é mesmo? Sei que onde tu estás não se comemora mais a idade terrena, todavia eu ainda estou por aqui, né, vivendo como ser de carne e osso. Então, permita-me enviar um abraço pra ti nesta data que, para nós que ficamos, ainda é muito querida. Fica com Deus e com teus irmãos e amigos, aí em cima.
“Não preciso nem dizer, tudo isso que eu lhe digo, mas é muito bom saber, que você é meu amigo”.
Texto publicado em 24/05/2019 no site Portal de Notícias:
https://www.portaldenoticias.com.br/ler-coluna/918/amizade-cafe-preto-e-pastel.html