Parafraseando Cazuza e Lispector, diria que só entende quem namora e lê e que, quem vive e lê, sabe. Quando chegamos ao final de um bom livro, principalmente daqueles mais extensos, dá uma tristeza e a saudade já se instala. É como aquela visita desejada e benvinda que fica um tempo conosco e, quando vai embora, imediatamente começamos a lamentar e a sentir falta. E, como dia 23 foi o Dia Mundial do livro, vou falar um pouco desse objeto táctil, a partir de um exemplo recente, analisando-o detalhadamente.
Aproveitando que esse ano completar-se-ão oito décadas do lançamento do grande filme ...E o Vento Levou (1939), resolvi ler o calhamaço de quase mil páginas que o inspirou, lançado em 1936 pela escritora estadunidense Margaret Mitchell (1900 – 1949). Raramente leio livro depois que vi o filme, mesmo sabendo que o primeiro sempre traz muito mais em suas páginas do que o segundo na tela, além de que os cineastas, via de regra, alteram algumas coisas do original. Só fiz exceção a Senhor do Anéis e, agora, a ...E o Vento Levou. Eu não aprecio ler uma história que não seja descoberta para mim, o supremo prazer que a leitura me proporciona.
Para minha surpresa, mesmo com a efeméride que acima mencionei, não foi fácil encontrar a obra nas livrarias. Achava, nos sebos em Porto Alegre, uma edição pocket da Record em dois volumes, que não queria, e, mesmo assim, quando havia um volume, não possuíam o outro, geralmente. Encomendei uma edição de um volume em capa dura da mesma Record ali na Livraria Santos de São Jerônimo, há um mês, e só semana que vem chegará, devido estar esgotada na editora. Fui então às bibliotecas. Em Charqueadas não existe, mas em São Jerônimo encontrei dois exemplares na Biblioteca Municipal Glauco Saraiva, edições da editora Hemus, tradução de Francisca de Basto Cordeiro, respectivamente de 1978 e 1986, esta última comemorativa ao cinquentenário de lançamento do romance histórico de Mitchell e em ótimo estado de conservação.
A de 1978 possui 800 páginas, enquanto a de 1986, 960. O motivo é a diagramação da mais nova, ocupando menor espaço de texto em cada página e, além disso, separando em página inteira cada início das cinco partes do livro e começando sempre na página seguinte cada um dos 63 capítulos (todos numerados em romano, em ambas edições). Na de 1978 o texto estava direto, todo acavalado. Também inclui uma biografia da autora que, na anterior, vinha nas orelhas, com um texto diferente e menor. Nas orelhas da mais recente aparece um interessante apanhado da repercussão da obra quando do seu lançamento, com números da vendagem nos EUA e na Europa. Óbvio que li a edição comemorativa (imagem acima).
Não é um caso de cotejar aqui um filme de mais de três horas com um livro de 900 páginas, apenas ressalto algumas diferenças gerais entre ambos, fundamentalmente que a amoralidade das personagens principais é amenizada no filme, bem como a questão do preconceito racial e da escravidão. Na telona, o produtor David Selznick (1902 - 1965) prioriza o enredo envolvendo os dois casais da trama, enquanto no texto o pano de fundo, a Guerra Civil dos EUA vista sob a perspectiva do Sul, os derrotados, é o mote principal. Agindo dessa forma, o roteiro torna ...E o Vento Levou mais palatável ao grande público, visto que a escrita de Mitchell relativiza a visão negativa sobre a escravidão nas fazendas de algodão sulistas, tal qual a encontramos explícita em obras como A Cabana do Pai Tomás (1852), de Harriet Stowe (1811 – 1896).
Na última parte do livro comecei a diminuir o ritmo da leitura, a fim de esticar um pouco mais o prazer de acompanhar os dramas das personagens naquele momento brutal da história dos Estados Unidos e, principalmente, por apreender mais claramente as motivações de seus atos, que o texto torna mais claras em relação ao que o filme mostra. Chegando à última página, à última linha e ao ponto final, o percurso finda inexoravelmente, restando a sensação descrita no primeiro parágrafo dessa crônica. Fim de livro!
Claro que acabei indo também na Estante virtual em busca dessas belas publicações da Hemus (que, na capa, reproduzem o desenho do cartaz de lançamento da versão cinematográfica da obra), e encontrei a 4ª edição, de 1982, que foi lançada sem as orelhas, ao contrário das outras. No mais, é idêntica à publicação de 1978. Veio com uma dedicatória na capa: “Nadja! Nesta hora Duas coisas devo lembrar: Não abandone tuas virtudes E não deixe de me amar. Ulisses Natal 84”.
Vale a pena a leitura desse romance, mesmo para quem já viu o filme. Recomendo tanto para quem namora e lê e quanto para quem vive e lê, como devia ser o caso da Nadja e do Ulisses há 35 anos...