Não assisto à TV aberta, a não ser jogo de futebol e, às vezes, jornal e filmes. Porém, quando vou visitar o meu pai aos domingos tenho que sentar em frente à televisão e olhar programas que o velho acompanha.
Alguns, com cantores infantis, ainda me despertam interesse. Já os outros não me prendem a atenção. Poxa, aguentar aquele concurso de danças dos famosos do Faustão é, para mim, dose! Sei que muita gente aprecia, mas eu não. O Gugu, mesmo sendo um apresentador bem simpático, nunca fez parte dos meus gostos, mas meu velho septuagenário pai apreciava (o Gugu ainda tem programa?).
Então lá estava eu, num domingo, anos atrás, sentado na sala com meu pai, assistindo ao Gugu. No programa havia uma macaca fazendo provas tipo comer doce ou banana, reagir a um homem vestido de chipanzé, essas coisas. O pai mudou para outros canais, parou uns minutos no Faustão e depois voltou para o Gugu. Saíra a macaca e estava agora uma moça mostrando bonecos para criança que imitavam perfeitamente um bebê. Muito realistas, interessantes. A guria foi dizendo:
- Ali são a “fulana” e o “ciclano”. São gêmeos.
Não lembro dos nomes, mas eram estrangeiros. Ela continuou:
- Esses são “X” e “Y”, também gêmeos. Esse outro é “G”.
A seguir havia uma boneca negra, a única. A moça verbaliza:
- Essa é a boneca negra...
E já passa para a outra:
- ... Essa é a “fulana”...
Foi rápido, mas não escapou a minha percepção. Comentei:
- Tu viu, pai?
- Ah? O que?
- Ali no programa. A única boneca que não tinha nome era a negra.
- É? Nem tinha me dado conta.
- Vai ver colocaram ali só pra fazer média racial, pois nem “batizaram”!
- É mesmo. Ou a guria esqueceu ou ela é uma boneca sem nome mesmo, anônima.
Isso, a boneca negra era anônima. Não tinha identidade. Era apenas um objeto, mais circunscrito a sua condição de boneca do que as bonecas brancas, que possuíam nome e, logo, encontravam-se mais próximas à condição humana que representavam. Isso me fez refletir. É normal, em sociedade, as pessoas tratarem as outras como coisas, como se fossem invisíveis, tornando-as sem visibilidade social.
Outra passagem, um pouco anterior aquele fato, veio a minha memória. Prometi, certa feita, presentear minha filha com uma boneca bem bacana, a que ela escolhesse. Na loja, ela gostou de uma negra, de qualidade e custo bem salgados, uma das que realmente mais chamava a atenção na prateleira. Comprei-a, pois palavra dada é palavra dada. Na hora, recordei de uma professora de Pensamento Político Brasileiro que tive na Unisinos, branca, que sempre dizia que passava os finais de semana “com meus negrões”, visto que era casada com um advogado negro e mãe de dois filhos.
Saímos pela rua e antes de chegarmos em casa passamos por uma senhora conhecida. Ela percebeu a boneca na mão de minha filha e falou:
- E essa bonequinha aí na sua mão?
- É minha filha!
- Ah, não, ela não pode ser a sua filha, ela é pretinha.
Não gostei do comentário, achei-o inadequado para ser dirigido uma criança pequena e retruquei:
- Claro que pode. E se o marido dela for negro? E se ela adotar a criança?
A mulher não falou nada, ficou meio sem graça. Ao chegarmos em casa expliquei da melhor maneira possível para minha filha, ainda uma menina de pouca idade, o que era preconceito racial e o motivo do comentário da senhora.
Eu, graças a Deus, fui criado num ambiente de pluralidade racial, onde a pessoa é avaliada apenas individualmente, pela personalidade e caráter. Hoje, 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, é bom pensarmos o que é preconceito racial e em como lidamos de fato com essa questão.
Boneca negra anônima. Lamentável.
* - Republicação adaptada de crônica homônima postada no Recanto das Letras em 04 de agosto de 2006 pelo autor.