CASO MARIELLE:
CONTRA A FORÇA BRUTA
NÃO HÁ RESISTÊNCIA?
Acabara de sair do show da Katy Perry na Arena Grêmio e estava no táxi. Pensava no espetáculo, antecipando mentalmente o que escreveria sobre ele para o Portal, quando uma notícia chamou minha atenção no rádio. Pedi para o motorista aumentar um pouco o volume.
“Vereadora do PSol do Rio de Janeiro é assassinada” – era a chamada que o locutor repetia. Nem dez minutos se passaram da apresentação de Katy e a realidade nacional voltava a ocupar minha mente. No PSol do Rio, só me vem à memória os nomes de Chico Alencar, Jean Wyllys e Marcelo Freixo. Não conhecia o nome de nenhuma vereadora carioca deste partido. Pra ser sincero conheço apenas o de Fernanda Melchionna, daqui de Porto Alegre.
Imediatamente, ao ouvir a notícia, tive a noção da repercussão que esse fato teria em âmbito nacional e internacional. O Rio de Janeiro é a cidade brasileira mais singular e famosa, dentre as grandes. E está na vitrine do mundo justamente devido à intervenção federal na segurança pública do estado. Nunca ouvira falar em Marielle Franco, nada sabia de sua biografia e atuação política. A partir daquela noite de quarta-feira, ninguém mais esquecerá quem ela foi, no Brasil.
A execução de Marielle remete imediatamente a da juíza Patrícia Acioli, morta em agosto de 2011 por milicianos, e a do jornalista Tim Lopes, assassinado em junho de 2002 por traficantes, ambas igualmente ocorridas na “Cidade Maravilhosa, cheia de encantos mil”. A questão é: se fazem isso contra pessoas que combatem a violência, o que não farão com o cidadão comum? A resposta: se chegaram ao ponto de eliminar pessoas situadas em setores chave da institucionalidade, é por que possuem concretamente força suficiente para tal e já massacram há muito o povão, instituindo a barbárie.
O Estado Democrático de Direito está em cheque, afirma a grande imprensa acertadamente. O poder paralelo é o que manda, independentemente a que força subterrânea estejamos nos referindo, eis que a execução da vereadora ainda há de ser esclarecida? Mais do que o assassinato de uma pessoa, o crime em tela é dirigido ao que ela representa, ou seja, à esfera institucional legislativa, democraticamente eleita. É exatamente o mesmo caso de quando executam, por exemplo, um policial: estão matando não apenas um cidadão, mas um representante da lei e das instituições.
Isso torna os crimes contra pessoas comuns, nós, de menor importância? Não, a vida humana é de igual valor, para todos. Quando tiram a vida de uma pessoa, tiram tudo dela: o que ela foi, o que é e o que seria. Contudo, a representatividade social dos indivíduos é diferente. Um artista famoso, quando falece, causa maior repercussão social do que um familiar nosso. No caso específico da vereadora, a simbologia dela ser uma militante de esquerda, negra, homossexual e moradora de favela exercendo um mandato ativo justamente na luta contra a violência urbana torna o crime socialmente mais impactante e abrangente. Era a quinta parlamentar mais votada do legislativo municipal do Rio de Janeiro. Isso, também simbolicamente, nos faz sentir mais vulneráveis e desprotegidos contra o poder paralelo. Se matam uma vereadora, o que sobra para a gente? Ou melhor, o que mais ainda sobrará pra gente, eis que agora até os representantes do Estado estão à mercê da ousadia e audácia criminosa? Quem nos protegerá, se até aqueles que deveriam nos proteger estão desprotegidos? E isso é um fato social.
E repercutiu muito, realmente. Toda a mídia, lideranças dos três poderes de todas as suas esferas, manifestações públicas em várias cidades brasileiras, a imprensa de todo o mundo. “Marielle presente” e “Luta no luto”, foram as palavras de ordem mais vistas e ouvidas desde quarta. No Parlamento Europeu, deputados chegaram a pedir que a União Européia cesse negociações com o Mercosul até o governo brasileiro solucionar o caso!
Eu poderia estar escrevendo sobre o baita show da Katy na Arena, sobre o St. Patrick’s Day que a Malte Puro vai fazer hoje em Charqueadas, que era a minha intenção. Entretanto, a importância social desse fato fez com que eu o abordasse. Se não houver resistência possível contra a violência, sucumbiremos todos a ela, deixando de viver no Estado Democrático de Direito e entrando, de forma total, no estado de barbárie no qual estamos parcialmente inseridos em nossa realidade cotidiana, como vítimas da anti-lei da força bruta. E, assim, não terá mais sentido e utilidade a última pergunta feita por Marielle Franco em vida: “Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?” A violência é uma espiral infinita, ensinou Gandhi.