Da década de 1960 à década de 1980, todo mundo que era contra a ditadura era a favor do povo e da democracia e estava no MDB. Só os da Arena e, depois, do PDS, eram os autoritários. Findo o regime militar e voltando a normalidade democrática, o joio começou, insofismavelmente, a ser separado do trigo: nem todo mundo que era a favor da democracia era a favor dos assalariados.
Nisso, dentre outros, as greves do ABC paulista, ao final dos anos 70 e início dos 80, foi um movimento que fez germinar novos partidos políticos que viriam justamente a tensionar o Brasil em busca dos interesses de sua classe assalariada. E daí deu para ver que a verdadeira disputa na política nacional era, então, assim como no resto do mundo ocidental, entre os neoliberais (direita) e os socialistas democráticos (esquerda). Essa disputa perdura.
O momento político atual coloca a nu esse embate, após o golpeachment na presidente Dilma Rousseff e do (verdadeiro) golpe nos assalariados públicos e privados que é perpetrado por Michel Temer, via congelamento de gastos em saúde e educação e reformas trabalhista e previdenciária em curso, todas colocando a conta no andar de baixo da população, com apoio de federações empresariais, mídia e setores das classes média e alta.
Esse modelo de ajuste fiscal ocorre também nos estados, como RS e RJ, por exemplo, sendo que os servidores públicos estaduais são os primeiros a perceber o quadro, visto ser no bolso deles que, hoje, esse ajuste incide. As pessoas costumam se dar conta da direção da política quando são vitimadas por ela e, então, reagem. É sobre esse pano de fundo que deve ser analisado movimento dos policiais militares capixabas.
Com o apoio dos familiares, se aquartelaram, reivindicando recomposição salarial retroativa a 2010. O governo do Espírito Santo (ES), com apoio da mídia, declarou guerra aos servidores, responsabilizando-os pelas mortes que ocorrem no período. Em fevereiro de 2016, foram 122 homicídios no ES. A Polícia Federal investiga que os assassinatos durante a greve, cerca de 150 (até 14.02.17), são, em boa parte, obra de grupos de extermínio, aproveitando o ensejo para acerto de contas.
Na terça-feira, o governo do ES publicou em seu diário oficial a abertura de processo contra 155 PMs, de um total de 703 (*) que estão sendo investigados devido à paralisação, onde, por mais paradoxal que pareça, podemos ver os ecos dos anos 1970. Nos homens e mulheres da PM, pode se observar o espírito dos metalúrgicos do ABC: fazer greve com tudo contra, sem amparo jurídico, não é para qualquer um. Só uma realidade muito adversa para estimular, nessas circunstâncias, tal opção. No RS isso só não ocorreu devido à política salarial implantada pelo governo anterior para todos os segmentos da segurança pública gaúcha e que o governo atual, depois de ventilar alterá-la, recuou, face à mobilização dos servidores.
Por outro lado, a reação negativa de setores da população à greve da PM capixaba, condenando-a e condenando-os, só mostra o entendimento que alguns (que aceitam passivamente as reformas em curso), mesmo vivendo de salário, possuem. Como escreveu Paulo Freire: “Os oprimidos, que introjetam a ‘sombra’ dos opressores e seguem suas pautas”.
Os PMs do ES preferiram brigar por seus direitos, mostrando que quem arrisca a vida trocando bala com bandido não dá a volta, mesmo que não ocorram passeatas populares quando um PM tomba defendendo essa mesma sociedade, mesmo que não existam movimentos sociais defendendo sua valorização remuneratória, dada a importância e o risco de sua função social. Uma tropa de elite, esses policiais militares capixabas. Poderiam ter se omitido ou se corrompido, mas foram à luta.
(*) - Atualização conforme site g1 (http://g1.globo.com/espirito-santo/noticia/2017/02/pm-diz-que-1151-policiais-respondem-inqueritos-no-es.html): "A Polícia Militar do Espírito Santo informou que 1.151 policiais vão responder a inquéritos internos por "risco a disciplina" e por "dano a sociedade ou a corporação" durante a crise de segurança que afeta o estado. Os dados foram publicados no Boletim Geral da PM, que circula internamente, nesta sexta-feira (17)".