Charqueadas estará completando amanhã, dia 28, 33 anos de emancipação. “Aos 33 Jesus na cruz, Cabral no mar aos 33 E eu... o que faço com esses números?”, diz a canção dos Engenheiros do Hawaii. Números... Não traduzem uma vida, tampouco uma cidade.
Charqueadas existe desde antes, desde há muito tempo. E antes de Charqueadas existia aqui um povoado. E antes disso, ainda, essa terra e o rio, que simplesmente existiam, sem nome, com ou sem o homem. Há muito, muito tempo, tempos imemoriais que os números, desconfio, não alcançam e, se alcançam, é como pura abstração e matemática, sendo impossível saber como o lugar onde hoje é Charqueadas era, de fato.
Charqueadas nasceu como uma vila voltada para o rio. A primeira coisa que por aqui se fez como uma atividade produtiva predominante foi o charque (*1), que dá, inclusive, nome para a cidade. Todos que aqui residem sabem disso, Saldino Pires (1944) e Benedito Veit (1938) - fontes para esse artigo - escreveram vários livros abordando esse assunto. Eu só retomo-o por ter visto nas redes sociais uma atividade interessante que a cinqüentenária Escola Otávio Reis (1964) realizou com seus professores e alunos, visitando vários locais importantes da cidade, que se referem à sua história, fazendo “selfies” nesses e postando-as no facebook da escola (
https://www.facebook.com/emefotavio.reis?fref=ts). E o rio, claro, estava lá, nas fotos publicadas, ao lado de outros locais.
Uma das vias públicas mais tradicionais da cidade (*2) é a Avenida 1º de Maio (antiga Rua da Igreja ou Rua das Casas da Caixa) que, em seus primórdios, ia até onde é hoje o Supermercado Bonato. Em seu início, bem próximo ao rio, temos a Escola Henri Duplan (1938) e a Igreja Matriz Nossa Senhora dos Navegantes (1946). Por ali ficava, tempos atrás, o Clube Tabajara (1953-57). Mais adiante, seguindo o leito do rio, pela Rua Ricardo Louzada (antiga Beira Rio), a Casa Naval, o Cine Teatro Charqueadas (cujo prédio foi demolido) e o Baar Xarqueadas/Café Recreio (1947) - esses, esperando seu resgate como monumentos de nossa história.
Mas isso é de um tempo que não existe mais, o da Charqueadas voltada para o rio, a do Porto das Minas (1882-1956) onde vagões puxados por locomotivas despejavam em chatas (embarcações propícias ao transporte do mineral) o carvão (*3) vindo das minas de Arroio dos Ratos, de um tempo onde os vapores e depois as lanchas faziam o tráfego de passageiros para Porto Alegre. Isso até começar a época da cidade de costas para o rio, quando primeiro a balsa (1965) e depois a ponte sobre o Arroio dos Ratos (1973) foram efetivadas e o transporte rodoviário, por ônibus, decretou o fim do rio como via de transporte público e abreviou o caminho terrestre para a capital que, antes, tinha de ser feito passando-se pela cidade de Arroio dos Ratos.
Subindo a 1º de Maio, chegamos ao cruzamento com a Avenida Bento Gonçalves (antiga Rua do Cemitério, que ia da Colônia Penal ao cemitério Júlio Rosa, seguindo como estrada para São Jerônimo). Ali, no centro da cidade, vemos o Clube Tiradentes (1957), o CTG Ramiro Barcellos (1959). O que não vemos mais no mesmo local, do outro lado da avenida, é o Supermercado São Roque, que foi uma das casas comerciais mais populares da cidade, localizado onde hoje ficam a Farmácias São João e a loja Pormeno$. Impossível esquecer do “bônus do São Roque”, o “dinheiro” do mercado, emitido em cédulas para os clientes comprarem a crédito. Ou o slogan “Não seja loke, compre no São Roque”. Com a recente morte dos empresários Jorge e Moisés Bastiani (o Pepino), foram-se os últimos membros da família tradicional na cidade, filhos do criador do estabelecimento, Libório Bastiani, Outro filho seu, muito popular, o Júlio César, é nome de rua na cidade.
E, nesse ponto, vemos outra face da mudança paulatina nas cidades: a do desaparecimento das pessoas que formaram, durante décadas, o seu cotidiano. Poderia falar aqui de centenas, milhares de pessoas que já faleceram e que deixaram sua marca na vida da cidade, no seu dia a dia. Cito dois: os ex-prefeitos de Charqueadas José Manuel Gonzales de Souza (1949-98) e Aldo “Baratão” Moreira dos Santos (falecido em 2014), personagens atuantes tanto no período pré quanto no pós emancipação, o primeiro sendo filho de uma família tradicional da cidade e também ex-prefeito de São Jerônimo, e o segundo ex-presidente do Sindicato dos Mineiros.
Se seguirmos a Bento Gonçalves em direção à Colônia, não conseguiremos mais chegar até lá. A construção da Aços Finos Piratini (1973), atual Gerdau (1992), bloqueou a rua que dava direto naquela localidade. Desviando pelas avenidas Geólogo White e Beira Rio ou subindo a 1º de Maio e indo pela ERS 401, poderemos chegar. Encontraremos uma Colônia bem mudada do que era nos anos 1970-80. O Posto de Controle (*4) já não existe mais, bem como o Casarão - Solar dos Barcelos (1906 – década de 1980) - que era sede da charqueada Meridional, de propriedade do ex-senador Ramiro Fortes de Barcelos. O Clube Americano (1946) está em ruínas, a Escola Ramiro Barcelos (1941) foi transferida de local e o prédio antigo, ao lado da Igreja Nossa Senhora de Fátima (1959) e da Penitenciária Estadual do Jacuí - PEJ (início da década de 1930), está ocupado pela Força Terefa da Brigada Militar (*5). Um lado bem positivo é que algumas ruas foram asfaltadas.
Voltemos à 1º de Maio. Podemos ver que os tempos continuam mudando: deslocando-nos até o Parcão - Parque Adhemar de Faria, onde antes ficava o campo do Grêmio Atlético Jeromina (1931), vemos uma gama de equipamentos públicos bem legais, como a Biblioteca Vera Gauss (1998), o Memorial ao Mineiro (1998), a Escola Maria do Carmo Fanfa Florisbal (2009), o Ifsul (2006), dentre outros. Agora, com a boa iniciativa da prefeitura em fazer um calçadão no local, percebemos que o pessoal mais jovem para lá se desloca em seus momentos de lazer, curtindo os bares e casas noturnas que, estrategicamente, ali estão localizadas. Desafoga centro da cidade e isso é bom, mas, por outro lado, afasta as pessoas um pouco mais do rio (*6). Faz parte.
Uma cidade é um ente em transformação contínua ao longo do tempo Os números não conseguem traduzir isso. Não vão, por exemplo, traduzir a gama de interações sociais que a mudança de endereço da agência local do Banrisul (*7) vai gerar. Há anos ali, na 1º de Maio, vizinha da Rodoviária (1971) (*8) e da Banca do Povo (1975). Ir ao banco, pegar um dinheiro, passar na lancheria da Rodoviária (que com a reforma, está uma beleza) tomar um café e ler um jornal, chegar na banca e comprar umas revistas, vai ser um elo de décadas que vai ser extinto. Isto também faz parte, mas os números não traduzem essas coisas. Tampouco Charqueadas e sua gente, dos quais fizemos um pequeno apanhado nesse artigo.
Parabéns Charqueadas pelos seus 33 anos de emancipação.
Notas:(*1) - O charque consiste na produção de carne bovina cortada em mantas que, após salgadas, são colocadas em varais para secar ao sol, visando aumentar sua validade para transporte e consumo em até um ano. As charqueadas, estabelecimentos próprios da indústria saladeril, formaram o primeiro ciclo econômico da cidade Charqueadas, antes disso uma vila de pescadores e de passagem de tropas de gado bovino (CHARQUEADAS, 2008). Conforme Maestri Filho, citado por VEIT (2008, p.15), a introdução da indústria saladerial na região onde localiza-se a cidade "foi a partir de 1753, com a penetação dos demarcadores do Tratado de Madri pelo vale do Jacuí seguidos pelos povoadores, até Rio Pardo (...). (...) além de outros menores como Santo Amaro e Triunfo". Já PIRES (1986). informa que, entre 1774-78,
o tenente coronel Francisco João Róscio, engenheirto e geógrafo, passou pela região e deixou relato escrito. PIRES (1986) também cita em sua obra o pioneiro Francisco Correia Sarafana, falecido em 1798, que aqui residiu. VEIT (2008), menciona Nicolau Drteys que, em 1817, passa pela região e cita as charqueadas, assim como Auguste Saint Hilaire em 1921, Arséne Isabelle em 1834 e Felippe Von Normann em 1859, esse último autor de um mapa que indica a existência 14 charqueadas ao longo do leito rio Jacuí. A produção entrou em decadência e colapso na década de 1920, com a introdução do sistema de frigorificação da carne (PIRES, 1986).
(*2) – Além das avenidas citadas nesse artigo, é importante mencionar mais duas que tiveram importância pelo fluxo populacional na Charqueadas das primeiras décadas do século XX, conforme salienta Saldino Pires: Rua da Castelhana (atuais Orvalino Dorneles e Rui Barbosa) e a Rua do Manoel João (atual Felisberto de Andrade).
(*3) - No mesmo ano em que o Porto das Minas, propriedade do CADEM, foi desativado, 1956, o Poço Otávio Reis, com 300 metros de profundidade, foi inaugurado pela COPELMI em Charqueadas, em janeiro. Em agosto de 1990 sua produção foi interrompida e, em setembro de 1996, foi totalmente desativado.
(*4) – O Posto de Controle ficava na entrada principal da vila, junto à ERS 401 (último acesso antes da ponte), em onde hoje está a lancheria Colonial. Consistia num pórtico de entrada com acomodações para dois funcionários, onde a entrada de pessoas e veículos na Colônia Penal era controlada.
(*5) - A Força Tarefa da BM foi criada no inverno de 1995 durante o governo Antônio Britto (1995-98), a fim de suprir as carências de efetivo funcional da Superintendência dos Serviços Penitenciários - SUSEPE (1968), assumindo três casas penais do Complexo Penitenciário do Jacuí: PEJ, Penitenciária Estadual de Charqueadas - PEC (1982) e Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas - PASC (1992). Hoje, a BM adminstra somente a PEJ, tendo sido devolvidas os outros dois estabelecimentos prisionais ao controle da SUSEPE duranrte o governo Olívio Dutra (1999-2002).
(*6) – Ao contrário da grande maioria da população afastada do rio, as poucas dezenas de pescadores charqueadenses que vivem intimamente ligados ao Jacuí sabem que, por exemplo, nessa Semana Santa de 2015, vai estar difícil conseguir peixe fresco, devido, segundo alguns pescadores, ao fato de ter ocorrido pouca chuva e dos peixes estarem retidos nas barragens acima de Santo Amaro, que nao foram abertas. Nem subindo quilômetros acima o Arroio dos Ratos se consegue uma pescaria minimamente satisfatória. A temporada está muito fraca esse ano. Estar ligado ao rio é possuir outra vivência, uma outra relação com o meio, muito diferente da de quem vive apenas a zona urbana.
(*7) – O Banrisul primeiramente funcionou na Rua Distrito Federal, próximo da orla do rio, ao lado da Loja Natal (em ruínas), de propriedade do senhor Narciso Bonzanini.
(*8) – A Rodoviária, inicialmente, funcionou de forma incipiente em vários locais na Avenida Bento Gonçalves, nas proximidades de onde hoje fica a Loja Bjaige, tendo sido transferida para o prédio atual no início da década de 1970.
- Agradeço a Saldino Pires, a Pedro Noé Rocha, a Cauê Florisfal, a Loivacir Lima, a Denizar Ferreira de Almeida e a Ricardo Rocha pelas informações prestadas.