Canudos: A Comuna do Sertão
Dia 1º completaram-se 112 anos do lançamento do livro Os Sertões, de Euclides da Cunha, um dos grandes clássicos da literatura brasileira. O arraial de Canudos foi algo como uma Comuna de Paris cravada no sertão da Bahia e, Antônio Conselheiro, um Edir Macedo daqueles tempos. Explico.
As tentativas de poder popular sempre foram tratadas a ferro e fogo pelos governos. Nunca uma comunidade independente do “status quo” foi aceita ou tolerada. Assim aconteceu com a Comuna e, de igual maneira, com Canudos, processos históricos, políticos e sociológicos diferentes de exercício pleno de organização popular, embora guardem similitudes.
Segundo Cunha, em seu livro, o arraial de Canudos, como ficou conhecido, ou o Belo Monte, como o denominavam os sertanejos seguidores de líder religioso Antônio Conselheiro, possuía “5.200 [casas], cuidadosamente contadas”. Sua população, conforme algumas estimativas, poderia ter chegado a ter até 26 mil habitantes.
Mesmo ao enorme custo de 4.000 soldados mortos (quase um quarto de seu efetivo total à época) em um ano de intensos combates, o Exército Brasileiro arrasou completamente a urbe de Belo Monte. Novamente Cunha nos informa sobre o fato, num dos parágrafos mais conhecidos de nossa literatura: “Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5 [de outubro de 1897], ao entardecer, quando caíram seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados”.
A Comuna de Paris, 26 anos antes, foi um movimento revolucionário da classe trabalhadora em ascensão; Canudos, o movimento da fé do sertanejo excluído e oprimido no seu líder messiânico, Antônio Conselheiro: ambos brutalmente reprimidos. Se lermos atentamente as autobiografias do bispo Edir Macedo e as releituras históricas sobre a figura do Conselheiro, poderemos observar semelhanças no tipo de liderança carismática, assim como Max Weber a trabalha em sua teoria sobre os tipos de dominação.
Igualmente, também, veremos a mesma unidade e mobilização popular em torno da fé cristã, a mesma perseguição pelos governos e a mesma crítica sistemática e preconceituosa por parte da grande imprensa ligada ao capital, às elites políticas e aos grupos religiosos dominantes. Porém, para sorte do bispo, nas décadas de 1970/1980 a República estava plenamente consolidada e a IURD não surgiu contestando o regime vigente. Já nos derradeiros anos do século XIX a República, ainda recente, precisava se afirmar, e as inclinações monarquistas do Conselheiro foram demonizadas pela imprensa, tornando-se a justificativa para a guerra, a morte para este e o extermínio para os habitantes do arraial.
Canudos foi, verdadeiramente, uma “guerra do fim do mundo”, como escreveu o peruano Mário Vargas Llosa. Hoje perdida no tempo e, no passado, perdida nos confins do sertão baiano, esse vergonhoso episódio de nossa “história nacional da infâmia” (agora parafraseando Jorge Luis Borges) ainda pode revelar, ao ser revisitado, muito do comportamento de nossas elites políticas e econômicas e da grande imprensa.
Para se conhecer mais sobre o assunto, além de obviamente ler Os Sertões, uma ótima alternativa é assistir a um dos melhores filmes produzidos pelo cinema brasileiro: Guerra de Canudos, do diretor Sérgio Rezende, lançado em 1997 e que conta em seu elenco com o recentemente falecido José Wilker (também um dos produtores do filme), numa magistral interpretação de Antônio Conselheiro.
“O sertanejo é, antes de tudo, um forte” – Euclides da Cunha. Testemunha ocular, sabia o que estava escrevendo.
Corpo exumado de Antônio Conselheiro
Texto publicado na seção de Opinião do jornal Portal de Notícias:
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