(Não É!)
Lembram do Baby da Família Dinossauro (foto acima), aquele que falava “Não é mamãe, não é mamãe”? Pois é, não é dele que eu vou falar. Mas, ao assistir o filme Noé nos cinemas, foi ele que me veio na lembrança. O nome do filme deveria ser “Não É”. Não É Noé! É qualquer outra coisa, mas não é Noé. Não é mamãe! No caso, não é papai.
O filme até que não é ruim, é legal. O problema é ele ser uma adaptação de um episódio clássico da Gênesis do Novo Testamento, ou seja, como o nome deixa claro, o do Dilúvio e da Arca de Noé. E uma adaptação que, na verdade, é uma releitura radical: além de mudar o sentido da história descrita na Bíblia, inclui uma gama de personagens e situações que passam ao largo do texto original. Logo, gostei mas não gostei do filme. Mais não gostei do que gostei.
Para (Não É) Noé, vale aquela máxima: uma obra de arte fala muito mais do tempo em que é realizada do que sobre o tempo que retrata. E nem estou abordando a releitura pelo sentido religioso, mas sim literário mesmo: qual a finalidade de se pegar um texto clássico e subvertê-lo totalmente? Que fosse um texto de Shakespeare, tipo Hamlet: qual seria a validade de lhe mudar o sentido e transformá-lo, praticamente, numa outra história, acrescentando personagens e fatos estranhos ao texto original? Não seria melhor então fazer um roteiro original, abordando os temas que se deseja?
Em (Não É) Noé se coloca muita violência e um toque fantasioso à moda Senhor dos Anéis. Um épico mítico e guerreiro, ao contrário do drama moral e religioso retratado na Gênesis. E a violência é uma das marcas do cinema de nosso tempo. E quando digo violento, estou falando de violento mesmo, o sangue jorra no filme. Fosse o 300 de Esparta, tudo bem. Mas não era, era Noé, isto é, (Não É) Noé.
Tudo bem, sabemos que Deus é retratado como vingativo e implacável no Velho Testamento, diferente do Deus misericordioso e tolerante dos Evangelhos, em conformidade com a pregação de Jesus. A Páscoa Judaica, só para citar um exemplo, o atesta, conforme os egípcios puderam conferir no Êxodo, quando da fuga dos judeus da Terra do Faraó: as dez pragas, a morte dos primogênitos e a abertura do Mar Vermelho. A mesma violência está presente na Páscoa Cristã (Quem lembra aí do filme A Paixão de Cristo, de Mel Gibson?), no episódio da Crucificação. Contudo Deus, ai, em vez de manifestar sua ira, envia seu Filho ao mundo e aceita seu martírio como sacrifício para a redenção dos homens, numa ato de extrema amorosidade, como diria Paulo Freire.
Mas em (Não É) Noé essa violência é gratuita, a meu ver. Mesmo o personagem principal, de laborioso servo do senhor, vira um duro guerreiro. Poderia falar aqui de todos as alterações que o filme traz em relação ao texto bíblico original, mas daí eu estaria estragando a curiosidade de quem ainda não o viu. E, por um lado, prefiro que as pessoas percebam por sua conta essas coisas ao assistirem (Não É) Noé e, por outro lado, pretendo chamar a atenção de quem assistiu o filme, mas que ignora a passagem tal qual foi descrita no Velho Testamento.
Logo, recomendo a quem pretenda ir aos cinemas ver o filme ler o Noé da Gênesis antes, a fim de não introjetar o Noé do filme como se ele fosse o Noé histórico. Ou ler a passagem bíblica imediatamente após o filme, o que dará no mesmo. Isso se faz mister para que possamos, ao invés de apreendermos Noé sofisticamente com os olhos de hoje, perscrutá-lo com os olhos de hoje, apreendendo seu significado para o olhar de ontem e o que este pode trazer para o olhar de hoje. Aí sim, poder olhar este filme, agora enquanto obra de arte (e não de mero entretenimento), e estimular a nossa reflexão.
Texto publicado na seção de Opinião do jornal Portal de Notícias: http://www.portaldenoticias.com.br