Mas bah, Che!
A vida (e o pensamento teórico) dos revolucionários dos séculos XIX e XX é muito atacada pela mídia conservadora, atrelada aos compromissos e interesses de classe que moldam sua visão de mundo. A essa crítica sistemática de direita se soma, por outro lado, o discurso panfletário de setores da esquerda, laudatórios. Ante esse barulho todo, fica difícil enxergar essas personalidades históricas como homens do seu tempo, sem uma visão sectária ou apaixonada.
O livro “Diário de um Combatente”, de Ernesto “Che” Guevara, da Editora Planeta, tem o mérito de trazê-lo despido de ambos os vícios, um relato cru até o osso, sem rodeios, sem reflexões teóricas. Um homem e sua circunstância, descrita por ele mesmo. A extrema dureza e visceralidade do que é relatado por vezes até sucumbe ante o estilo limpo e despojado do Diário de Che, que parece estar escrevendo um relato burocrático. Lembra o estilo dos dois volumes do Diário de Getúlio Vargas (editora Sicilliano/FGV).
Escrito dia a dia a partir do desembarque do iate Granma em Cuba em dezembro de 1956, com 82 revolucionários liderados por Fidel Castro, dentre eles Che, Raul Castro e Camilo Cienfuegos, sendo que somente 12 entraram vitoriosos em Havana nos primeiros dias de janeiro de 1959, os quatro acima dentre eles. Eram jovens os revolucionários cubanos: Fidel, o mais velho, tinha 30 anos na época; Che, 28. E talvez essa soma de decisão com juventude os fez superar as dificuldades iniciais.
Homens do seu tempo os revolucionários de Cuba, iguais aos demais dos séculos XIX e XX, pessoas que se atiravam no vazio numa noite de completa escuridão, num caminho sem voltas por seus ideais: era vencer ou morrer. E, muitas vezes, como no caso de Che e Fidel, pessoas oriundas da própria elite econômica que combateram. O primeiro, um médico argentino, de uma família de classe alta em decadência financeira. Fidel era advogado.
Mas o que impressiona em “Diário...” são as condições adversas extremas que os revolucionários cubanos enfrentaram, principalmente nos primeiros meses, implacavelmente caçados pelas tropas leais ao governo de Fulgencio Batista, apoiado pelos EUA. E, depois de consolidados na região da Sierra Maestra, permaneceram no primeiro ano em constantes deslocamentos por essa região de picos entre 1.000 e 1.900 metros de altura. Para se comparar com a nossa realidade, o Morro da Borússia, o qual muitos visitam ou passam por ele nesses dias rumo ao litoral, tem 400 metros no seu ponto mais alto.
Um feito e tanto a Revolução Cubana. Que determinação possuíam esses homens. Uma revolução armada não é um processo entre cavalheiros, é a barbárie, onde o barro do qual os homens são feitos vem à tona sem atenuantes. Os cubanos permaneceram na “ilha” construindo o novo governo depois da tomada do poder. Che morreu em 1967, aos 39 anos, na Bolívia, tentando uma nova revolução. Isso revela muito sobre as condições objetivas em que se dá um processo revolucionário armado em cada país, em cada realidade.
Todavia, Che foi coerente em sua biografia, um revolucionário latino americano, não um revolucionário nacionalista. Capturado e depois executado pelo exército boliviano (igualmente apoiado pelos EUA), entrou para a história como um dos grandes personagens do século XX. A leitura de “Diário...” revela o homem, o combatente e o dia a dia da Revolução Cubana. Um testemunho, de certa forma, autobiográfico (não aprecio muito biografias), não contaminado por vaias ou por palmas com pretensões de objetividade científica.
Publicado no jornal Portal de Notícias em 14 de janeiro de 2014:
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