Cemitérios
O cemitério é a presentificação do passado. Andando por lá, vemos as pessoas do nosso tempo que não estão mais presentes fisicamente, mas sim como símbolos, nos seus túmulos. E, assim, de certa maneira, ainda estão presentes nesse mundo material, embora não mais interagindo. Logo, o cemitério não é um símbolo do passado, mas sim uma parte do presente. Não retrata o que foi, mas o que ainda é.
“A” e “E” jazem juntos num sepulcro decorado com mármore “carijó”, no cemitério de Charqueadas. Casaram no início da década de 40. Quase setenta anos depois do seu casamento, como resultado da, digamos, matriz biológica e genética que foram, deram origem há 27 pessoas, todas ainda vivas, conheceram o sol e a lua neste mundo de Deus: Três filhos, nove netos e quinze bisnetos.
Apenas os filhos compartilharam a vida nesse mundo com eles. Os dois partiram com quarenta e dois anos, ele em 1958, ela em 1966. Estiveram ainda presentes na família e neste mundo, por todos os anos após sua partida, na versão e na memória oral e fotográfica que seus filhos passaram aos seus netos. Estes não lhes conheceram, mas era como se vissem aquelas pessoas da foto se movendo, sorrindo, falando, amando, em suma, vivendo. De toda essa gente acima mencionada, visitam o túmulo regularmente no dia de finados cinco pessoas: os três filhos, um neto, um bisneto. Três que vão visitar o que restou de seus genitores para reavivar e reconstruir suas memórias primeiras. Os outros, para zelar pela memória da família e refletir sobre a as versões daquelas vidas e sobre o mundo, a existência, a vida e a morte. Todos eles conservam o jazigo.
O que é morrer? Sem entrar na questão metafísica, mas apenas se atendo a realidade histórico-social em que o ser humano existe nesse mundo concreto, morrer é deixar de viver e iniciar o processo de deixar de existir, para sempre. Daqui a setenta anos, quem ainda irá visitar a morada dos despojos de “A” e “E”? Algum bisneto ou tataraneto, talvez? E passados outros setenta anos, quem irá? Ainda vai existir o túmulo? Ainda serão lembrados?
Responda depressa, pra si mesmo: Quem foram seus bisavós? Quem foram seus tataravós? Sabe alguma história de vida de algum deles que tenha sido contada pra você?
Morrer é deixar de viver e o início do processo de deixar de existir concretamente.
Primeiro deixamos de viver, de ser uma estrutura biológica autônoma; depois nos desintegramos lentamente enquanto estrutura biológica inerte; a seguir começamos a desaparecer enquanto entes simbólico-abstratos da realidade histórico-social. Finalmente, sumimos sem deixar rastros. Somos inteiramente apagados deste mundo, como se nunca tivéssemos, de fato, existido.
Quais eram as divindades cultuadas há 100 mil anos? Qual será o deus hegemônico no ocidente daqui a um milhão de anos? O que restará desse nosso tempo daqui a 100 milhões de anos? Daqui a cinco bilhões de anos, quando esse planeta sucumbir junto com o sol e o sistema solar, o que restará da humanidade? O que é morrer? O que tem real importância no viver? Qual foi a importância e o significado da vida e da morte de “A” e de “E” para eles e para os outros?
E para outro casal, “J” e “M”? Casaram no final da década de vinte do século XX, quando Mostardas ainda era distrito de São José do Norte. Geraram 12 filhos. Cinco ainda existem concretamente nesse mundo. Toda a sua geração dá mais de 50 indivíduos. Um quarto desses lhes conheceram em vida (muitos nem se conhecem entre si). “J” e “M” ainda existem simbolicamente na memória de seus familiares. Muitos nunca foram na sua morada final.
“A vida é bela", mas viver é sobreviver, correndo riscos calculados, eis que só o amor dá cor pra vida. Morrer é deixar de viver e iniciar o processo de deixar de existir. Os cemitérios são os museus ativos do nosso presente. Neles, os que morreram ainda existem.
Texto publicado no Jornal Portal de Notícias em Novembro de 2013.
João Adolfo Guerreiro
Enviado por João Adolfo Guerreiro em 16/12/2013