Foto - dramaturgo Qorpo Santo, filho (?) de José Manuel de Leão.
O Leão Farroupilha de Charqueadas
Há sim de se revisar as teses que envolvem a interpretação histórica tradicional que se dá à Revolta Farroupilha, num “pensar-certo” pertinente que vai da “curiosidade ingênua” à “curiosidade epistemológica”, crítica, metodologicamente rigorosa e ética, nos termos que Paulo Freire escreve em Pedagogia da Autonomia. Mas também não podemos desqualificá-la gratuitamente, esvaziando sua condição de mito fundador do “gaúcho”.
Se toda a “tradição é inventada”, em todos os países deste mundo, como nos fala Luis Augusto Fischer citando Eric Hobsbawm, devemos olhar para a ressignificação da Guerra de 1835-45 com essa ótica: uma reinvenção em disputa, conforme o período histórico em que diferentes sujeitos a reinventam. Mais: não podemos também julgá-la com o ponto de vista dos dias atuais, nem como defensores ou acusadores da mesma.
Por exemplo: em 1835 Karl Marx ainda não tinha publicado O Manifesto do Partido Comunista, o que o fez somente em 1848. Logo, naquele tempo, na América do Sul, ser revolucionário era ser liberal, em antítese à monarquia. Tanto que os farrapos criaram a República de Piratini e eram abolicionistas. Claro, fatos que podem (e são) analisados e avaliados por um olhar crítico a partir das flagrantes incoerências concretas dos farroupilhas (o Massacre de Porongos, traição aos Lanceiros Negros, é uma delas). Mas não se pode negar que, na revolta que terminou empatada, mesmo com a rendição dos revoltosos, esses temas foram colocados na pauta da luta 50 anos antes da Abolição da Escravatura e da Proclamação da República no Brasil.
Tendo os pressupostos acima em conta, queria falar do coronel
José Manuel de Leão, charqueador, político e líder farrapo, catarinense que veio morar em Triunfo e Charqueadas, supostamente pai do famoso dramaturgo Qorpo Santo (*1) (foto acima). Morto em combate em 18 de setembro de 1839, por tropas imperiais, em sua charqueada situada na barra do Arroio dos Ratos, em Charqueadas, era o quarto nome listado nos processos de 1836 contra os farrapos, logo após Marciano Ribeiro, Bento Gonçalves e Onofre Pires, conforme Saldino Pires nos conta em seu livro “Monografia de Charqueadas” (1986) e Benedito Veit endossa em “Por Que Charqueadas?” (2008). Logo, vê-se que o “leão”, além de bravo, era considerado.
Como disse Ortega Y Gasset (adoro essa frase, vocês já devem ter percebido), “o homem é o homem e a sua circunstância”, e o coronel Leão morreu peleando em defesa de suas ideias e interesses, visto que também era, como charqueador, atingido pela crise do preço do charque que, principalmente, motivou a revolta dos os gaúchos. Um homem conectado a seu tempo, vemos.
A tropa que o cercou em sua charqueada, ainda pela madrugada, era comandada pelo famoso major Francisco de Abreu (também conhecido por Chico Pedro ou Moringue) e composta por 90 homens de cavalaria e 60 de infantaria, esses “alemães voluntários” (?). Leão e mais sete de seus homens foram mortos, dentre esses seu irmão Francisco José de Leão (o Chico Leão), sendo nove feitos prisioneiros, de acordo com o relato do combate feito por Abreu em documento citado no livro de Pires.
O que me intriga é o fato de Leão não ser nome de nenhum piquete ou CTG em Charqueadas, terra em que viveu, trabalhou, lutou e morreu. Pela importância da Revolta Farroupilha para o Rio Grande e por sua participação na mesma e na história da cidade, não merecia esse vulto ter, no mínimo, uma estátua no Parcão? Não existe foto sua para embasar tal? Ora, existe foto de Alexandre, o Grande?
Ademais, como disse Mário Quintana no Caderno H, “estranha verdade - tudo pode sair muito mais bonito nas fotografias, mas sai muito mais verdadeiro nas pinturas”. Concordo com o poeta, a interpretação (ou reinvenção, ou ressignificação) é mais humana. Uma estátua faria jus ao “leão”, mesmo que, depois, ela fosse vítima da crítica fácil do cocô dos pombos, os maiores iconoclastas de todos os tempos.
(*1) -
Alguns autores dão essa informação ao mencionarem dados da biografia de Leão. Entretanto, ela é contestada pelo genealogista Diego de Leão Pufal, descendente de José Manuel e autor do do artigo A Família Leão e a Revolução Farroupilha (http://pufal.blogspot.com.br/2008/09/famlia-leo-e-revoluo-farroupilha.html) . O mesmo esclarece, em contato via Fecebook em 16.09.2016. "De fato o Qorpo Santo não vem citado na genealogia da minha família Leão, pois pertence à família Machado Leão. Enquanto os meus Leão imigraram da Espanha para Laguna, depois passando para Arroio dos Ratos e Charqueadas, a família do Qorpo Santo, os Machado Leão, imigrou dos Açores e também se estabeleceu na mesma região. Já li, porém, muitos livros e teses em que os autores se equivocaram nas genealogias, misturando uma família com a outra. Na realidade um antigo historiador cujo nome me falta no momento, escreveu dizendo que Qorpo Santo pertencia à família de José Manuel de Leão. Daí por diante muitos outros que escreveram a respeito repetiram o equívoco sem consultar as fontes primárias. Acredito que a confusão tenha se dado pelas memórias do Qorpo Santo, no sentido de que o pai dele teria falecido no episódio da Farroupilha de 18-9-1839.Acontece que Qorpo Santo foi filho de Miguel José de Campos (herdou o sobrenome Leão do avô materno, Francisco Machado Leão) que talvez tenha falecido na mesma emboscada com José Manuel de Leão (Juca Leão) e Francisco José de Leão (Chico Leão), todos vizinhos e conhecidos. Acredito que, pelo sobrenome Leão, tenham ligado as memórias de Qorpo Santo a Juca Leão e Chico Leão, ora como filho daquele, ora como sobrinho dos dois".Texto pulicado na seção de Opinião do Jornal Portal de Notícias: http://www.portaldenoticias.com.br