Hannah Arendt, o filme
“Para males extremos, remédios extremos”, é um dos bordões mais freqüentes do personagem de HQs Tex Willer, o ranger justiceiro. Refletindo sobre o filme “Hannah Arendt”, de Margareth Von Trotta, que vi no último sábado e que está em cartaz nos cinemas, lembrei dessa frase. Realmente, o (breve) século XX foi uma “era dos extremos”, como bem assinalou (e cito-o aqui mais uma vez em meus artigos) Eric Hobsbawm, inclusive no pensamento e na repercussão deste e sobre este.
Arendt foi uma filósofa de origem judia-alemã, uma das grandes intelectuais do século passado, ainda hoje quase tão citada quanto um Michel Foucault, por exemplo. O filme relata o período em que escreveu uma série artigos para a revista estadunidense The New Yorker, como enviada especial a fim de acompanhar o julgamento do prisioneiro nazista Adolf Eichmann em Jerusalém no início dos anos 1960, logo após o mesmo ter sido capturado pelo serviço secreto israelense na Argentina, onde vivia com um nome falso.
Ao realizar uma análise filosófica baseada no que viu durante o julgamento, Arendt elaborou o conceito clássico de “banalidade do mal”. Como sua análise desmistificava a visão corrente de Eichmann como um “demônio nazista”, mas sim o colocava como uma pessoa medíocre, comum, um mero burocrata a serviço de uma máquina totalitária, que não pensava e apenas executava ordens, além de questionar a postura de algumas lideranças judias durante a guerra, Hannah Arendt sofreu uma avalanche de críticas.
Família, amigos, círculos intelectuais e acadêmicos, governo israelense e grande parte da opinião pública ficaram visceralmente contra ela, deixando-a praticamente isolada em sua posição intelectual. O compromisso da autora com a verdade possível e reflexiva, com a independência do pensamento crítico livre do senso comum e com uma ética da coragem intelectual tiveram como resultado a estigmatização de seus artigos. O filme mostra isso claramente, inclusive centrando na questão humana das relações pessoais de Arendt. Hoje, entretanto, o seu livro “Eichmann em Jerusalém”, baseado nos textos publicados na The New Yorker, é um dos clássicos da ciência política. Paradigmático. O livro e as suas circunstâncias (Ortega y Gasset).
Interessante ver a lenta construção do pensamento da autora para uma revista em meados do século passado, fora da conectividade total de nossa “modernidade líquida” (Zygmunt Baumann). Conseguiria Arendt hoje o tempo necessário, na era da informação instantânea, para construir tal interpretação a partir de um fato do momento? Conseguiria escrever hoje com a mesma radicalidade lúcida que utilizou (mesmo durante a “era dos extremos”), em nossa era líquida onde, como cantou Lulu Santos, “o tempo escorre pelas mãos”, veloz e fugaz?
Não vou falar mais sobre a película, pois corro o risco de entregar (se é que já não entreguei) seus passos principais, mesmo se tratando de um fato histórico emblemático para a construção do pensamento moderno, bastante conhecido. Detesto esses chatos que contam os filmes antes da gente vê-los e não quero me tornar um.
Ressalto que foi a melhor fita sobre intelectuais que assisti depois de “Meia Noite em Paris”, de Woody Allen, embora esse último seja uma (excelente) obra cinematográfica de ficção. Tem também a mesma força do documentário “O Dia que Durou 21 Anos”, de Camilo e Flávio Tavares. Por aí podem tirar uma base. Recomendo.
João Adolfo Guerreiro
Enviado por João Adolfo Guerreiro em 05/08/2013
Alterado em 07/08/2013