Amor, o filme
Já foi lançado em DVD o filme Amor, escrito e dirigido pelo austríaco Michael Haneke. Uma obra de arte: denso, profundo e perturbador. Uma formiguinha não conseguiria atravessá-lo com água pelas canelas (com certeza o diria Nelson Rodrigues), eis que oceano. Estou escrevendo esse texto para comentar e recomendar, coisa que raramente faço, em se tratando de filmes.
Uma obra despida de recursos sonoros e visuais, nem trilha sonora possui. Realidade crua. Dolorida. E é um filme de amor! Amor como ele é. A vida como ela é (de novo Rodrigues), ou melhor, como ela também pode ser, mesmo em se tratando de amor.
Não o recomendo para os menores de vinte anos. A plenitude física e a falta de experiência de vida (como ela é e como ela pode ser) possivelmente os deixariam enfados com a história, alheios à sua intensidade. Em sentido inverso, tampouco o aconselho aos maiores de setenta , pois podem ficar tocados em demasia pela realidade tratada.
O que é o amor? Hoje em dia tal palavra é usada tão fácil e tão livremente que até enjoa, tal qual uma overdose de melado. Ou é dita e escrita como fosse sinônimo de paixão, esse fogo-fátuo dos sentidos incendiando de forma intensa e fugaz corpos sobre lençóis em tons de cinza. Aliás, não inventaram cor mais apropriada para a paixão erótica: cinza. Amor é cor.
Um casal de idosos são os protagonistas de Amor. Mais não direi para não estragar a surpresa, não serei eu a cometer tal pecado. Um casal de idosos que se ama, de verdade, não a verdade que é o antônimo de mentira, mas sim a verdade da vida como ela é ou pode ser, a verdade humana. Com suas dores, intensidades, felicidades e contradições. Contradições de quem viveu um bom bocado e, assim, sabe o que é a vida (adoro Clarice Lispector).
Amar o belo e o saudável é fácil. É até um prazer! Tem um fogo-fátuo nele misturado! Mas quando o belo se desfaz e, pior, a doença aparece, daí são outros quinhentos (bilhões!). A doença, insensível, algoz, persistente, ela devora tudo o que a gente é e foi um dia. A velhice é aterrissagem, a doença precipício. Um teste de fogo para o amor. Fogo, não fogo-fátuo, eis que fornalha intermitente, derretendo nossa aparência e forjando ante nossos olhos a nossa verdadeira face ante o espelho de nossa autoconsciência. Nós, paridos brutalmente de nós mesmos.
Você não vai ver lágrimas fáceis em quem assistir Amor (eu não vi as pessoas chorando no cinema) O corte será mais profundo. As pessoas ficam perturbadas. A verdadeira dor seca as lágrimas, pois a água é a primeira coisa que evapora ante o fogo emocional. E, como o amor é cor, quando ele é assim açulado, as cores se tornam sombrias, fortes, escuras. E daí você daria tudo pelo tal cinza, pois as angústias do cinza são recheadas de lágrimas, e a água as alivia facinho facinho. Aqui não, é cor, muita cor, tensionada para além do limite do suportável.
Amor, um grande filme. Quem já passou por algo parecido vai encontrar nele um espelho. Quem nunca passou, mas já sabe o que é a vida, vai entender perfeitamente o que estará vendo. O amor é um sentimento tão forte, mas a carne é tão fraca... Está na bíblia. Está na vida. Está no filme de Haneke. Uma obra de arte. Perturbador. Didático. Reflexivo. Enriquecedor. Você vai decifrá-lo e ele vai te devorar assim mesmo.
Recomendo-o, assim, desse jeito, sem dourar a película. Mas vocês tem alternativa, claro: efeitos sonoros e visuais, roteiros simplistas, emoções baratas e lágrimas fáceis num blockbuster qualquer em 3D...
TEXTO PUBLICADO NO JOPNAL PORTAL DE NOTICIAS.
João Adolfo Guerreiro
Enviado por João Adolfo Guerreiro em 09/04/2013
Alterado em 09/04/2013