- A rima está por cima!
Foi no Salão de Eventos no terceiro andar do Solar Shopping, no terceiro ou no quarto Sarau Literário de Charqueadas, 2007 ou 2008, não recordo exatamente a edição e o ano e tampouco essa exatidão importa agora. Importa o fato.
Estávamos num debate sobre literatura e poesia estimulados pelo bate papo com um autor local. Um professor emitia uma forte opinião sobre poesia, criticando a utilização da rima no poema, colocando-a como algo ultrapassado. Claro que gerou polêmica e, no calor da celeuma, a sempre contida, doce e educada poetisa Valda Tissot Junqueira (foto acima) se levantou da sua cadeira bem à frente do público e interveio, mão erguida à altura do ombro, num gesto que lhe era característico:
- Professor, a rima está por cima!
Sob os aplausos do público surpreendido com a sua rara atitude, a literata sorriu docemente, como também era uma peculiaridade sua. A discussão estava encerrada, pois, afinal, a Dona Valda tinha se manifestado de maneira peremptória sobre o assunto e ninguém ali ousaria contestá-la, ainda mais que a maioria concordava com a sua posição, eu dentre eles.
O fato demonstra bem a importância que a dona Valda Tissot Junqueira teve na cultura local, principalmente na literatura. Natural de Arroio dos Ratos, mudou-se para Charqueadas em 1958, foi professora até 1991 e começou a escrever em 1970, tendo trabalhos publicados em antologias a partir de 1986. Teve forte atuação literária junto aos clubes de mães da cidade, sendo, inclusive, por esses homenageada ao darem o seu nome a uma biblioteca. Foi a patronesse do primeiro Sarau Literário de Charqueadas, em 2005, um reconhecimento à repercussão do seu trabalho poético junto à comunidade. Justo, visto que nenhum outro literato local atingiu igual representatividade social nos 31 anos de Charqueadas produzindo poesia, somente o jornalista e historiador Saldino Antônio Pires lhe fez par em representatividade, mas seu trabalho tem uma característica de natureza diferente.
Para nós do segmento literário da cidade Dona Valda foi esteio, referência e estímulo, uma pessoa verdadeiramente estimada e respeitada no meio. A sua presença constante no Sarau sempre deu credibilidade social ao evento e, desta forma, segurança aos organizadores. Um ícone vivo da literatura local, assim como Mário Quintana o foi para Porto Alegre. Quem compartilhou desse tempo e desse campo cultural sabe exatamente do que falo.
Sua partida é um vazio que fica, pois é um tremendo equívoco esse ditado que diz “ninguém é insubstituível”. Os seres humanos não são livros impressos em série, são livros únicos, manuscritos, raros. Outros são escritos, mas os que desaparecem fisicamente não tem substituição, marcaram definitivamente o seu tempo. Não vamos ter mais suas declamações suaves, líricas, intensas e fluídas, sempre de memória, e ela era a única que assim fazia no Sarau. Seus textos expostos nos painéis do Solar, sempre organizados e suavemente coloridos, montados por ela própria em colaboração com suas filhas...
Na última quinta-feira, no seu sepultamento, o dia estava limpo, após uma semana de tempo fechado. O sol do final de tarde estava amarelo e prateado. Amarelo, “A cor do amor”, como ela definiu em seu poema no livro “Do outro lado da vidraça”, de 2002 (publicou também “Poesia com data marcada”, em 2008), texto musicado pelo Alberto André. A lua já visível no céu azul junto com as nuvens brancas, o vento refrescante, as árvores verdes e, visto do Cemitério Júlio Rosa, o Rio Jacuí. “O dia se fez poesia para se despedir da poetisa”, pensei e, depois, descobri que a também poetisa Rejane Barczak pensou quase a mesma coisa naquele momento.
“A rima está por cima”. A rima está lá em cima, junto de Deus. Meus sinceros pêsames a todos os familiares dessa grande charqueadense do nosso tempo.
Texto publicado na seção de opinião do jornal Portal de Notícias.