“O Papa é Pop”?
Usar o título da famosa canção dos Engenheiros do Hawaii em um artigo falando sobre o Papa é lugar-comum no Brasil. Mas a renúncia do cardeal alemão Joseph Ratzinger ao papado como Bento XVI pode ser definida de muitas formas, menos como clichê. Além de poucas vezes em dois mil anos de história do catolicismo e a primeira em seiscentos anos, é a primeira renúncia papal feita por alegado motivo de saúde.
Contrariado totalmente a tradição de um sumo pontífice ir até o último suspiro no cargo, Razinger preferiu a aposentadoria, abrindo espaço para a escolha de outro titular para o trono de São Pedro. Ao agir assim humanizou a figura do papa, opondo e priorizando as fragilidades do homem real à santidade figurativa. Eis aqui a grande simbologia do ato efetivado dia 28.
Ser o titular de um “estado mundial” como o Vaticano e líder espiritual da maior religião do Ocidente não é uma tarefa fácil destinada a homens comuns. É ser mais que um rei ou presidente, é ser um eleito pra ser simultaneamente homem e divindade, chefiando uma instituição que tem o mérito da longevidade milenar. Joseph Ratzinger pode ser definido de várias formas como papa ou religioso, menos o de ser uma pessoa comum.
Quem muito define o homem por trás de Bento XVI é o insuspeito frei franciscano brasileiro Leonardo Boff, a personalidade mais visível da Teologia da Libertação, movimento tão combatido tanto por João Paulo II quanto por Bento. Ao falar do teólogo e professor Ratzinger sempre lhe enaltece a inteligência e o preparo intelectual aliados a sua educação e fineza de trato, transparecendo uma clara simpatia e admiração. Atendo-se somente a tais observações nem se suspeitaria que o cardeal alemão conduziu em 1984 o processo na Congregação para a Doutrina da Fé, órgão que sucedeu a Inquisição e ao Santo Ofício, que acabou por levar ao afastamento de Boff da estrutura formal da Igreja Católica.
Já o papa Bento XVI tem do mesmo Boff críticas severas ao que, na visão do teólogo brasileiro, leva ao fortalecimento de uma Igreja conservadora e afastada de uma “opção pelos pobres”. À parte as divergentes interpretações sobre desse debate, o certo é que, pelo pensamento predominante de analistas laicos e religiosos sobre o Vaticano, os últimos dois papas deram uma guinada à direita no catolicismo enquanto instituição religiosa. Sobre esse caráter institucional da religião, podemos observar as palavras do sociólogo belga François Houtart:
“Outra função da instituição é reproduzir a si mesma. Isso coloca um problema sociológico de todas as instituições, a saber a dialética entre os fins e a organização. Os fins não são os objetivos para os quais existe uma organização. (...) A contradição surge quando a finalidade da organização é sua própria reprodução. Isso se produz nas Igrejas quando, de maneira não necessariamente consciente, a finalidade desta chega a ser mais a reprodução das Igrejas do que da evangelização” (Sociologia da Religião, Editora Ática, 1994, pagina 113).
Tal contradição Boff vê personificada entre o padre, teólogo e professor Joseph Ratzinger e o papa Bento XVI, ambos o mesmo homem que, numa atitude incomum, renunciou. Um homem como poucos, que devolveu a Humanidade à Santidade sem diminuir a mesma. Parece que toda a sua vida foi um caminho para prepará-lo para tal ato, simples e fundamental. Renúncia que não é fuga, mas sim humildade e desapego à instituição pelo bem dela mesma e da fé que representa. Com isso, vai deixar uma marca histórica mais profunda do que o do longo papado e martírio físico do seu antecessor Karol Vojtyla. Quem diria. Menos pop impossível.
Texto publicado na seção de Opinião do jornal Portal de Notícias: http://www.portaldenoticias.com.br